Por André Ricardo Valle Vasco Pereira*
Estamos assistindo a uma ofensiva que visa disciplinarizar a classe trabalhadora e todas as forças que questionam as hierarquias estabelecidas. Há ondas periódicas com tais objetivos. No Brasil (e no mundo), a última delas se deu no início dos anos 1990, quando a direita inventou o conceito de Nova Ordem Mundial, se travestiu de “moderna” contra o “atraso” (a esquerda, os progressistas), apresentou o Consenso de Washington como seu programa e propagandeou a “globalização” como um ideal a ser atingido. Foi um fenômeno conjuntural e se esgotou no fim daquela década. Neste período, a extrema direita estava ativa na Europa e o fundamentalismo islâmico lançava bases para sua expansão. Mas estes pólos foram devidamente “isolados”.
Já na primeira década do século XXI, houve um relaxamento dos excessos daquela fase anterior. Na América Latina, chegou-se mesmo a acreditar em uma reação em cadeia, que parecia estar sendo liderada pela Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e Cuba. O Brasil de Lula, o Chile de Bachelet, e a Argentina dos Kirchner seriam versões capitalistas mais moderadas de uma resposta à esquerda, social-democrata, moderada. Só que, nesta mesma fase, uma contra-ofensiva foi sendo elaborada. Desta vez, por meio da aliança entre o neoliberalismo e a direita militante.
Com o crescimento econômico internacional puxado pela China e os governos de reação ao neoliberalismo, o emprego formal voltou à tona e também os projetos nacionais de desenvolvimento. Só que não houve mudança no plano das relações sociais de trabalho, que já seguiam os padrões do toyotismo: metas, produtividade, foco no mercado. Viveu-se, então, uma fantasia de ascensão social, formalização do emprego, erradicação da miséria e contenção do conflito distributivo. Enquanto, nos anos 1990, a direita pode crescer com base na queda abrupta do socialismo real, sem precisar de uma aliança com os extremismos conservadores, a retomada de terreno que está se dando na década de 10 do século XXI precisou reinventar inimigos para justificar um ataque ao relaxamento que estávamos vivendo. Os imigrantes, os negros, os muçulmanos, os “comunistas”, as drogas, os “gayzistas”, as “feminazi” são fantasmas sociais amplamente disseminados para justificar um novo ataque.
No campo da educação, a ideia é a de eliminar uma suposta influência da esquerda. No Brasil, ela se materializa no projeto do Escola Sem Partido, mas há correspondência em outros lugares, como é o caso de um site norte-americano que estimula os alunos a denunciarem professores “comunistas”, chamado Professor Wachtlist. Não existe doutrinação de esquerda, mas é preciso fingir que sim, para justificar tanto o controle quanto a perseguição em ambiente pseudo-democrático. Para além disso, porém, é necessário impor o empreendedorismo cultural como modelo educativo: atacar qualquer noção que foque nas coletividades, deslocando a preocupação para os indivíduos isolados, vivendo seus problemas de empregabilidade no mercado e buscando as soluções necessárias para tanto. É por isso que TEM QUE existir um marxismo cultural, uma doutrinação a ser combatida com as armas autoritárias de uma vigilância a ser exercida pelos alunos e seus pais e não pelo poder de Estado.
Mas a coisa não fica apenas no caráter reacionário da perseguição. Além das escolas administradas por fundações bancadas por empresas, da submissão às metas de notas dos exames internacionais de desempenho e da ênfase no ensino técnico, a mudança no Ensino Médio se conecta com a Reforma da Previdência. O que está planejado é uma idade mínima de 65 anos com 49 de contribuição. O início da atividade laboral deveria ocorrer, então, aos 16. Curiosamente, o ministro da Educação critica o ensino noturno, defende os turnos integrais e um nível médio no qual o estudante passaria a ter a “liberdade” de, aos 15 anos de idade, escolher a sua profissão ou, pelo menos, o campo no qual vai se especializar. Se o ideal, então, é que a pessoa só comece a trabalhar após o fim do nível médio, aos 18, a aposentadoria só se dará aos 67. Aos 15, alguém define seu futuro, ao qual ficará preso até a terceira idade.
E como a aposentadoria terá teto, cada um precisará buscar alternativas, como os fundos complementares. Quem for demitido, deverá se virar, gerindo seu próprio negócio. A escolha de uma profissão não poderá abrir mão da empregabilidade, da preocupação com o mercado, do aproveitamento de oportunidades. Tudo isto compõe uma visão de mundo. Nela, os atores coletivos deixam de existir como referência. Sindicatos, associações, movimentos sociais não são legítimos para falar sobre educação, previdência e trabalho. Partidos políticos também não prestam. Coletivos dedicados à luta feministas, LGBT ou dos negros são expressões de “mimimi”. Além disso, as arenas coletivas de decisão, como os Parlamentos, também são vistos como corruptos e ineficientes. Precisam ser fechados.
A conjuntura posterior aos anos 1990 não representou uma autêntica alternativa, mas apenas um relaxamento, um soluço. Agora, uma nova onda disciplinarizadora, de âmbito internacional, com idiossincrasias locais, se levanta. Ela se assenta em mudanças de fundo que não foram devidamente atacadas. Desta vez, sua base é o neoliberalismo, além do conservadorismo social, religioso e político, que flerta com duras críticas não só à esquerda como à própria democracia liberal. A extrema direita cresce na Europa e no Brasil. Primeiro a gente tira a Dilma, depois acaba com o “comunismo”, depois, com a democracia. Se este último passo for dado, tendo em vistas as bases sólidas de apoio ao projeto que está sendo implantado, o tempo de sobrevivência desta conjuntura pode ser bem maior que a encomenda.
*Professor do Departamento de História/UFES