Por Oeber de Freitas Quadros*
O filme de ficção científica "6º Dia" (The 6th Day), lançado no ano 2000, mostrava que em 2015 a clonagem de um animal de estimação poderia ser feita durante um passeio no shopping. O filme ainda retrata a possibilidade de modificar a genética de seres humanos para eliminar doenças. De lá para cá, parte da ficção já é realidade, graças aos avanços da engenharia genética.
Nos últimos anos, uma nova descoberta tem chamado a atenção de vários cientistas e do público em geral, sendo matéria de capa de revistas e jornais populares. Tudo surgiu de uma dúvida intrigante: "Por que algumas bactérias não são atacadas por vírus?" Na verdade, o que ocorre é um mecanismo natural de defesa da bactéria. Quando a bactéria detecta a invasão do DNA do vírus, produz duas moléculas de RNA responsáveis por "guiar" uma enzima chamada “Cas9”, que identifica e corta o material genético do vírus, interrompendo a infecção. Depois de neutralizados, os vários pedaços do DNA do vírus são colocados no DNA da bactéria, como uma "memória da infecção". A técnica recebeu o nome de CRISPR/Cas9 (do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, ou seja, Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas).
A partir daí os cientistas tiveram uma grande ideia: utilizar CRISPR/Cas9 para mudar partes indesejáveis do DNA de outras células. Em teoria, com esta técnica é possível modificar qualquer gene de interesse. Laboratórios podem encomendar o RNA-guia personalizado e a enzima Cas9, tudo pela internet. A grande novidade desta técnica, em comparação com outras é a taxa de sucesso de células modificadas e a rapidez na sua execução.
Vamos supor que cada célula é uma fábrica, como uma padaria, e que o DNA (o código genético) seja um livro de receitas. Cada produto feito nesta padaria corresponde a uma receita encontrada no livro (como os genes são encontrados no código genético). Se existe um erro na receita, os produtos saem ruins, com defeito. Uma solução seria corrigir a receita. Através da engenharia genética, utilizando a técnica CRISPR/Cas9, é possível fazer correções no DNA das células.
Esta poderosa ferramenta permite uma melhoria nas características de células para além do que já era feito pelo melhoramento genético clássico.
Para uma planta ser modificada geneticamente por métodos clássicos, é necessário a introdução de genes que não são dela, como por exemplo, genes da proteína de um vírus. No final desta técnica é obtida uma planta transgênica resistente à invasão daquele vírus. Apesar de, historicamente, todas as plantas transgênicas liberadas para o consumo terem sido consideradas seguras, ainda existe uma grande polêmica sobre o assunto.
Com CRISPR/Cas9 é possível fazer modificações no DNA da célula sem a necessidade de fazer a introdução de novos genes. Para pesquisas em biotecnologia aplicada ao agronegócio já temos alguns exemplos:
- Para fazer uma planta transgênica resistente ao herbicida glifosato, era necessário colocar o gene de uma bactéria na planta. Com CRISPR/Cas9 já foi possível fazer alterações nos genes naturais de arroz e de canola para deixá-lo igual ao gene da bactéria.
- Inativação de genes do pepino, que também eram usados por vários vírus durante a infecção. Sem estes genes disponíveis, os vírus não conseguem mais causar doenças no pepino.
- Foi possível aumentar o tempo de validade de cogumelos comestíveis nas prateleiras, inativando genes que promoviam o seu escurecimento.
- O milho produz dois tipos amidos: a amilose (25%) e a amilopectina (75%). Para indústrias alimentícias e de produção de papel, quanto mais amilopectina melhor. Então foi desligado o gene que produz a amilose e o milho passou a produzir 100% de amilopectina.
- Aumento da capacidade de fermentação da levedura Saccharomyces cerevisiae, a mais utilizada na produção de pão, cerveja e etanol.
Em todos os casos citados, a tecnologia CRISPR/Cas9 permitiu melhorar determinadas característica apenas com o desligamento de genes, sem a necessidade de incluir genes de outras espécies. Pelo processo evolutivo e algumas centenas de anos, essas mudanças poderiam ocorrer por mutações naturais. Com a mutação induzida usando esta nova ferramenta, estas modificações genéticas não foram consideradas transgênicas.
Com a constante redução dos custos de edição gênica e sequenciamento de genomas, o avanço das pesquisas com CRISPR/Cas9 trouxe a chamada "democratização da engenharia genética". As possibilidades são inúmeras, abrangem quase todos os seres vivos. Estamos numa nova era de revolução genética.
* Biólogo, Doutor em Ciências/Biotecnologia (USP), Pós-Doutorado em Biotecnologia (UFES), Pesquisador do Núcleo em Biotecnologia da UFES.
oeberquadros@gmail.com