Trago para casa um pequeno caderno de endereços que comprei na papelaria da esquina e hoje me disponho a anotar nele os telefones de alguns amigos e pessoas com as quais, de uma forma ou de outra, venho me relacionando ao longo do tempo.
Verdade é que, passados uns tantos e desenganados anos o homem acaba aprendendo que é preciso ir anotando tudo o que possa parecer importante para a sua sobrevivência e, às vezes, perdidos que estão tantos e tantos neurônios consumidos pelo limiar da velhice, até o próprio endereço.
Não ria o amado leitor, pois eu falo sério: sei de um sujeito que de certa feita namorava a mulher de um outro dentro do carro quando ladrões, revólveres em punho, o arrancaram do banco e o puseram para fora do veículo. Ato contínuo, arrancaram com o carro e com a mulher do outro, e aí pintou o drama: o que dizer depois se encontram a mulher que não é a dele, mas dentro do seu carro e no meio do mato, desmaiada por causa de uma coronhada na cabeça? E se estivesse morta? Não iriam supor que poderia ser ele o autor do crime?
Desespero assim fez o sujeito esquecer o próprio endereço, só se lembrando do bairro, pelo qual andou o dia inteiro perguntando às pessoas se sabiam onde ele próprio morava. O que o salvou foi a carteira onde guardava o dinheiro, na qual ele havia afixado uma etiqueta com o seu nome e endereço, para o caso de recebe-la de volta em caso de perda.
O velho e secreto caderninho, que há muitos anos vem guardando tantos e tão ansiados desejos, já está em frangalhos e precisa se aposentar. Lentamente começo a passar para o novo os lugares e os telefones onde posso encontrar os amigos que ainda tenho. Omito alguns – não porque já não os tenha como amigos – mas porque os anos andaram correndo com tanta pressa que não sei se ainda vale a pena saber por onde andam. Talvez tenham morrido, talvez tenham se mudado daqui ou talvez tenham endurecido o coração a tal ponto que também a eles não interessa mais saber como ando e como vivo – e como isto incomoda e dói.
E neste transplante de pedaços de mim mesmo, o que vai me impressionando agora é ver como pude manter, nas entrelinhas do caderno, e por tantos anos, segredos dos quais já não me lembrava mais, malgrado me tenham sido particularmente gratos. Foram códigos que inventei e a forma que encontrei para manter distante dos olhares curiosos o nome daquela mulher com a qual possa ter trocado algumas carícias e que no caderno tem o nome de beija-flor. Há alguns outros, mas agora vão deixar de viver aqui porque se o tempo não se encarregou de reduzi-los a pálidas lembranças, já não preciso mais, a esta altura da vida, de códigos ou segredos que possam identificar uma outra mulher que tenha um dia me amado.
Não esqueço de anotar também o meu próprio endereço no novo caderno. Assaltos ocorrem a toda hora e, embora não me ocorra que alguma mulher possa ainda querer me acompanhar em um passeio de carro, devo considerar a possibilidade de uma coronhada na cabeça como um fato viável, nos dias em que vivemos. Daí que esquecer o lugar onde moro pode significar a troca do lugar quentinho onde costumo dormir e sonhar por um banco frio de jardim para passar a noite, o que não seria nada bom.
Acho que terminei a tarefa. O velho caderno, com anotações de preços de coisas que comprei, de encontros que marquei e de corações com os quais mercadejei, vai para o lixo. Vou começar tudo de novo, mas estou de mal com o meu passado, e o que espera este senhor já maduro e que preenche um novo caderno de endereços, é que dele agora só constem bobagens, toleimas, coisas simplórias assim que qualquer noviça inocente possa ler e com elas eventualmente sonhar, sem que com tal esteja a cometer qualquer pecado.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!