Por Aylê-Salassié F. Quintão*
Pesquisadores acadêmicos, a Justiça e a própria sociedade precisam tirar proveito “desse tempo de confissões inconfessáveis” (Cunha, 2017) para uma reavaliação profunda da realidade brasileira e a projeção de um futuro para o País com mais objetividade. É um momento de aprendizado. Não vai salvar a Pátria, mas, segundo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Força Tarefa da Operação Lava Jato, as revelações dos 150 delatores ajudam a desenterrar estruturas arcaicas viciadas que emperram o desenvolvimento, obstruem os pensamentos e a brasilidade.
A delação, mesmo abrigada juridicamente, é vista, na política, pela esquerda, como “deduragem” e traição. A referência está nos militantes revolucionários que, presos e torturados, terminaram por comprometer colegas. O tema chegou a desaparecer, até que a Comissão da Verdade restabeleceu a figura do delator, levantando o véu das impunidades e das violências contra aqueles companheiros.
Ao envolver as elites, a delação espontânea terminou ganhando foro jurídico e privilégios penais. Pode ter, sim, um tempero de esperteza. Contudo, tem permitido, desvendar estruturas de dominação manipuladas no mundo da política e da economia, com parcerias até no estrangeiro. São conjunções de interesse escusos que, ao longo da história, minaram a justiça social no Brasil e emperraram a porta de saída da pobreza.
Assumindo publicamente os erros cometidos em nome da fé, a Igreja tomou a frente da luta contra esse estado de coisas, pedindo antes perdão, e adotando medidas saneadoras. Veio a Lava Jato, e a delação passou a expor as pessoas à indignidade, à perda do respeito público e até familiar. O reconhecimento do erro, intuído, entretanto, pela boa fé, é o de que os sujeitos desejam a reconciliação com a verdade. Reconhecem o pecado e, pelo arrependimento, dispõem-se a cumprir a penitência judicial: pagar por erros com o quais não conseguem conviver socialmente.
No campo político, a delação – e não a “deduragem” - corresponderia quase a uma autocrítica: “tarefa inadiável de reconhecer os próprios erros, analisar suas causas e discutir os meios pelos quais possam ser corrigidos “ (Dix Silva, 2006). Caberia ao indivíduo ou ao grupo analisar os caminhos seguidos, atos e formas, atitudes e interpretações, os desvios, com o fim de promover uma correção de rumos. De uma perspectiva revolucionária aplicar-se-ia a uma doutrina, a um comportamento social, ou a um partido. A Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil deixou uma bela experiência sobre o tema.
A autocrítica permanente é um método recomendado aos socialistas, como forma de manterem-se alinhados à realidade e de corrigir desvios no curso de revoluções e governos. A direita chama isso de avaliação, reavaliação ou balanço. Nada contra. O filósofo marxista húngaro István Mészáros (2006) observa que “...o pensamento marxiano – estudiosos da obra de Marx - não é um sistema fechado, sagrado, que não possa ser modificado, retrabalhado, inclusive, a partir de categorias externas que se mostrem razoáveis”. Para ele, a autocrítica é propulsora de novas visões e táticas. “Mas, adverte, não necessariamente de avanços teóricos”. O problema estaria, de fato, nas categorias que a praticam.
Por aí, somente a esquerda poderia dispor da prerrogativa da autocrítica. A direita não. A delação da direita seria “deduragem” mesmo, o que remete a complexidade das análises de Hanna Arendt, ao interpretarmos o comportamento aparentemente cínico de Emílio e de Marcelo Odebrechet que, diante de Sérgio Moro, acharam graça da situação que patrocinavam. Aquele riso parecia expressar mais aflição, e não deboche. A percepção instantânea de um cenário fantasioso que, surpreendentemente, eles ajudaram a criar e a manter. Provavelmente, ao reconhecerem a prática de ações grosseiras e de proporções tão imensas, riram para não chorar de efeitos que nunca imaginaram. Brasileiros também, com relações estreitas em outros países, estariam eles definitivamente carimbados lá fora pelos atos praticados contra o seu próprio País. Criminosos? Sim, e como tais passíveis de rigorosas penalidades. Mas, talvez já estejam exemplarmente conformados, como Eike Batista.
A prática da autocrítica está verdadeiramente amparada no socialismo científico de Marx, embora no Brasil seus seguidores pareçam tê-la abandonado, trocando-a por táticas de lutas, num estilo stalinista, condenado pelo comunista, também húngaro, Lukács ( 1968), como “oportunismo”. Aliam-se – afirma - convenientemente ao sindicalismo neoliberal, na expectativa de transformar os trabalhadores em agentes do partido da vanguarda revolucionária.
É inspiradora a advertência de Lukács trinta anos atrás: “Na raiz dos problemas nacionais está uma modalidade de oportunismo que é, talvez, a mais grave das deformações legadas por Stálin: ao invés de utilizar os princípios teóricos gerais do marxismo para corrigir a ação prática, os revolucionários subordinam-se mecanicamente às necessidades imediatas, às exigências momentâneas da atividade política. “Com isso, renunciam a uma das conquistas fundamentais da perspectiva marxista: a unidade da teoria e prática. A teoria fica reduzida à condição de escrava da prática e a prática perde sua profundidade revolucionária”. Segundo o filósofo, os efeitos de semelhante situação são catastróficos.
Enfim, a perspectiva da autocrítica, reforçada no espaço da Lava Jato por mecanismos jurídicos inovadores, ajudaria muito a desanuviar o cenário que aí está. Incita a reflexão. As delações são uma oportunidade rara para o desmonte da máquina de dominação que as elites construíram ao longo da história neste País. Daí que a sociedade deveria temer, de fato, aqueles que se recusam a fazer a autocrítica.
*Jornalista e professor
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