Helder Gomes*
O momento é de crises. A marolinha converteu-se em tsunami, mas suas raízes estruturantes remontam à implantação do Plano Real. Como se sabe, o Brasil foi um dos últimos países latino-americanos a aderir ao modelo de estabilização monetária elaborado pelo Consenso de Washington, pautado em medidas conectadas a um novo momento da trajetória de desenvolvimento dependente. Em resumo, a ancoragem cambial e de abertura comercial exigia, inicialmente, a atração de dólares para a formação de reservas e para cobrir as despesas com importações, via investimento direto estrangeiro e via endividamento externo, que se converteria em endividamento interno. As privatizações de empresas e serviços públicos serviriam nos dois sentidos, dentro do modelo proposto: atrair investimento estrangeiro com a venda do patrimônio estatal e, ao mesmo tempo, financiar parcialmente as despesas púbicas, que cresceriam bastante com a explosão da dívida pública.
O Plano Real nascia, assim, ancorado nessas premissas neoliberais: ancoragem cambial, desregulação dos fluxos de capital, abertura comercial, ajuste nas contas públicas e privatizações. Pela primeira vez, a proposta de controle da inflação não seria vinculada ao congelamento de preços, mas, ao contrário, estaria assentada na criação de uma moeda nova indexada (a Unidade de Referência de Valor – URV) e na promoção de uma hiperinflação na moeda antiga (o cruzeiro real): deixando livre a remarcação de preços dos produtos na moeda antiga e, também, a data de sua conversão à URV, dentro de um período pré-estabelecido (até o final de junho de 1994). Os salários de celetistas com emprego em empresas privadas e os salários e vencimentos pagos no serviço público foram convertidos compulsoriamente à URV, de acordo com a data-base de cada categoria. Na verdade, o chamado imposto inflacionário acabou sendo incorporado definitivamente aos salários pelo critério utilizado, já que os níveis salariais utilizados para o cálculo da média, os dos dias dos efetivos pagamentos e não aqueles contratados, traziam a corrosão inflacionária de até 40% interna a cada mês de referência.
De um lado, o Plano Real conseguiu reduzir efetivamente a inflação. Entretanto, do ponto de vista da capacidade do Estado fomentar novas políticas de desenvolvimento, do endividamento público e da dependência externa da economia brasileira, ele foi desastroso.
A reforma do Estado aparecia naquele contexto como uma exigência inexorável. Talvez, a melhor síntese da proposta gestada no governo de Fernando Henrique Cardoso e multiplicada até hoje pelos estados e municípios brasileiros foi aquela apresentada pelo então ministro da Administração e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, no livro “Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil”, de 1995.
Para Bresser Pereira, a causa fundamental da crise econômica seria a crise do Estado. “[...] Crise que se define como uma crise fiscal, como uma crise do modo de intervenção do Estado, como uma crise da forma burocrática pela qual o Estado é administrado”, dizia Bresser. Ou seja, para ele, não foi a crise econômica e a forma como ela foi conduzida pelos governantes que geraram uma crise fiscal e, sim, o contrário.
Segundo essa perspectiva, seria necessário implantar uma reforma do Estado, para resolver a crise econômica, e, mais, o problema maior estaria nos estados e municípios. Dessa maneira, a reforma serviria, segundo Bresser, para, “[...] a curto prazo, facilitar o ajuste fiscal, particularmente nos estados e municípios, onde existe um claro problema de excesso de quadros; a médio prazo, tornar mais eficiente e moderna a administração pública, voltando-a para o atendimento dos cidadãos”. O ajuste fiscal seria, assim, “[...] realizado principalmente com a exoneração de funcionários (...), com a definição clara de teto remuneratório (...) e com modificações do sistema de aposentadorias...”
A proposta geral seria, então, promover um modelo de Estado que fosse gradualmente alterando suas funções na sociedade. Na sua proposta, o Estado “[...] continua responsável pela prestação dos direitos sociais, mas (...), gradualmente, deixa de diretamente exercer as funções de educação, saúde e assistência social para contratar organizações públicas não-estatais para realizá-las”. Essas áreas seriam repassadas às organizações sociais autônomas que, uma vez criadas, seriam financiadas por recursos públicos e pela venda de produtos que as mesmas pudessem gerar. Segundo Bresser Pereira,
As novas entidades receberão por cessão precária os bens da entidade extinta. Os atuais servidores da entidade transformar-se-ão em uma categoria em extinção e ficarão à disposição da nova entidade. O orçamento da organização social será global; a contratação de novos empregados será pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho; as compras deverão estar subordinadas aos princípios da licitação pública, mas poderão ter regime próprio”.
Os governantes passaram a buscar, desde então, formas econômicas e políticas para realizar um Estado regulador e transferidor de recursos. A proposta seria, desde então, garantir linhas de financiamento, a fundo perdido, de ações e projetos que o mercado não tivesse condições de, sozinho, realizar.
O Estado passaria, assim, a abrir oportunidades para a apropriação de recursos públicos, por empresas e outras formas de organizações privadas, que passariam a exercer a função de prestadoras de serviços essenciais. Restaria aos entes públicos o papel de monitorar essas atividades por meio de agências reguladoras. Além disso, vários órgãos públicos passariam a ser geridos a partir da criação de agências executivas de governo, que ganhariam mais autonomia na prestação de serviços de segurança pública, financiamentos, seguridade etc.
O Estado gerencial seria, assim, composto dos seguintes elementos básicos:
- Núcleo Estratégico, sob propriedade estatal, composto pelas atividades burocráticas dos Três Poderes, que passaria a ser administrado de forma burocrática e gerencial, o único cuja modalidade de ingresso seria o concurso público;
- Atividades Exclusivas, com a criação de agências executivas, sob propriedade estatal, cuidariam da Segurança Pública, Controle, Fiscalização, Subsídios, Seguridade Social Básica, que seriam administradas de forma gerencial;
- Serviços Não Exclusivos, após gradativo processo de publicização, as atividades de educação, pesquisa, saúde, museus etc., passariam a ter um caráter público não estatal, geridas por organizações sociais privadas;
- Produção para o Mercado, privatização das empresas estatais.
Esse foi o modelo projetado desde o início do Plano Real e que agora tem sido ainda mais aprofundado. Àreas essenciais de atendimento popular estão gradativamente sendo repassadas para a exploração privada, cujo ápice tem sido a proposta de Reforma da Previdência que, ao mesmo tempo que retira o Estado dessas obrigações, procura forçar, quem pode pagar, a aderir aos fundos de pensão privados.
*Helder Gomes é economista e doutor em Política Social.