Por Eduardo Selga
Quem presta atenção no entorno e não apenas subsiste entre asfaltos e congestionamentos de ordem a mais diversa (no trânsito e no trânsito da vida), percebe: o ambiente urbano mantém uma devotada disposição em mostrar-nos situações por completo inusitadas ou com pequenas variantes em torno de um roteiro já conhecido.
Um comportamento que há décadas vem adquirindo maior número de adeptos nas capitais brasileiras, e em grandes cidades de um modo geral, é não pagar a passagem dos ônibus urbanos, mesmo porque as tarifas são de uma indecência desonesta. Estou falando dos que pulam a roleta, como quem brinca de saltar fogueira de São João, em grande parte homens adolescentes. Eu já me incomodei com isso, achava mesmo inadmissível fraude com o pobre empresário que se esforça para atender bem a comunidade e blá-blá-blá.
Hoje, não. Quando me lembro disso, eu rio de mim. Na verdade, para ser mais amplo, eu oceano de mim. Ainda que sem horizonte. E o faço mesmo quando as asas da tristeza pousam em meu ombro, corvo amarelando essa espécie de antirriso na medida em que é apenas simulacro de felicidade.
Não sou nenhum entusiasta da iniciativa privada ou dos lucros hiperbólicos na prestação de serviço de necessidade pública, mas devo confessar: a cena me surpreendeu. É que, mesmo relativamente vacinado contra o sem-número de estereótipos que nos circundam impiedosa e diariamente, muitas vezes conseguindo abortar ou circunscrever o pensamento criativo, a ruptura sempre me deixa suspeitoso, às ocultas, medindo e pesando se a fratura na normalidade pode mesmo ser assim denominada ou se é apenas um teatro, cenário contemporâneo que oculta atrás de si o casarão seiscentista de sempre.
Eu seguia pois meu destino de criatura urbanoide, confortavelmente instalado num dos ônibus sempre pontualíssimos que fazem de minha vida um cotidiano britânico, sem quaisquer sobressaltos; absorto em minhas cogitações de cidadão que se supõe politicamente consciente e alinhado com as carências de seu tempo; divagando superfícies porque é impossível pensar profundidades enquanto o ônibus sacoleja nas ruas ou pula nos quebra-molas.
Eis que em dado instante, ainda ninguém em pé no veículo, embarcou uma passageira nos padrões do considerado “normal” em nossa sociedade tão falsamente fraterna: loira cuja artificialidade era visível, na pele um branco total radiante, sorriso comercial de margarina, uns ares daquela “arrogância boa” que alguns preferem confundir com independência. Cheia de panos que se harmonizavam entre si nas formas e nas cores, saia curtíssima, anéis, levou a mão à bolsa e eu supus pretendesse pegar dinheiro.
Mas não. Muito boa de pontaria, sem pestanejar atirou o objeto de uma distância razoável e ele se encaixou no espaço vazio do banco que eu ocupava. Ato contínuo, empoleirou-se na roleta para ultrapassá-la. Uma mulher tão aparentemente classe média fazer isso? Interrompeu o movimento por um instante ao notar as expressões de censura e susto.
Tantos queixos caídos e carrancas tinham explicação: ela deixou à mostra o rendilhado violeta de sua intimidade. Um panorama. E ficou ali, passarinho em fio de alta tensão, sem descer para frente ou para trás, a fisionomia de menina abusada. Sua voz de contralto nos perguntou a todos mais ou menos o seguinte, se bem me lembro:
— Algum problema? As senhoras e as senhoritas gostaram do modelito? E os senhores nunca viram?
Eu nunca tinha visto, reconheço. Minha surpresa nem foi tanta por causa do devassamento do que normalmente não se manifesta à luz do sol, e sim pela robustez do volume.
Não sei se prestou especial atenção em mim, em meu aparvalhamento, mas o fato é que riu uma risada zombeteira e finalmente decidiu arredondar a incompletude do movimento, pulando a roleta, sentando-se ao lado de um estarrecido passageiro. No caso, eu.
Suspirou, ajeitou os cabelos montados nalgum salão. Quando percebeu em mim um sujeito cheio de sobressaltos com a situação (ainda existe quem se assuste? — talvez tivesse pensado), em um mundo no qual o inusitado de hoje deixa de sê-lo na semana seguinte, derramou-se num sorriso afetuoso. Abriu a bolsa que antes havia caído no espaço vazio do banco, e dela retirou um nécessaire de onde sacou pequeno leque ainda fechado e um cartão de visita no qual se lia: “Pejota Catapedra –profissional liberal e empreendedor delivery”. Com gestos sugeriu que eu o guardasse comigo, mas não aceitei. Li e devolvi o cartão, numa aspereza muda, desnecessária. O número do telefone, para não parecer ainda mais malcriado, digamos eu tenha me esquecido dele.
— Sabe como é... Em tempos temerosos como este, é preciso ser multi e mega focado para atingir as metas. É uma questão de target, não sei se me entende. E haja performance para demonstrar o know-how de modo a causar uma sinergia diferenciada com o público consumidor. Não há workshop que ensine isso, sabia?
Eu franzia as sobrancelhas e balançava a cabeça como quem concorda, tentando entender aquela voz. Ela perdeu completamente a coloração feminina e assumiu um tom musculoso. Olhando bem... aquilo em sua garganta era um pomo de adão? Com a voz muito baixa, como quem narrasse um segredo, fitou-me nos olhos.
— Veja bem... Eu até poderia pagar a passagem, mas tenho um acordo de prestação de serviço com o motorista e com o cobrador. Aliás... Ele não é um fofo, todo centrado enquanto dá e recebe cédulas? Nós três dialogamos muito, um feedback e tanto. Mão lavando a outra, sabe como é... Além disso, quase duzentos reais por mês de passagem... Meu lucro de microempresário reduziria muito. E isso não está em meu plano de negócios.
Meu rosto certamente foi motivo de diversão, pois o súbito homem (agora eu tinha certeza disso), voz grave, sem qualquer artificialismo, porém mantendo os gestos femininos, abriu o leque e rapidamente acobertou o rosto abaixo dos olhos. Para ocultar o sorriso, com certeza. O biombo encavernou a voz, e fiquei menos intranquilo, querendo acreditar ninguém próximo ouvia a conversa.
— Afinal, qual a surpresa, meu querido? Raros neste país são os que podem se dar ao luxo de uma vida incorruptível, já percebeu?
Virei meu rosto para o vidro da janela, fingindo que a paisagem urbana, velocidade e monotonia, me interessava. Na verdade, um pretexto para, diante de meu mal delineado reflexo no vidro, cismar no que o tal Pejota acabara de dizer. E lamentar o quanto ele estava coberto de razão. Somos todos impelidos a tarefas e atitudes que nos diminuem perante nós mesmos. A vida em sociedade, hoje muito mais que ontem, é uma prostituição diuturna e, nesse sentido, as metrópoles parecem imensas Vilas Mimosas. Ou, porque há o sequestro da liberdade, grandes penitenciárias. Como manter intactos certos valores éticos, se a sociedade os reconhece absolutos apenas em tese, a depender de uma dinâmica que muito tem a ver com a filosofia do Tio Patinhas? Somos convertidos em moeda de troca por causa da mais variada espécie de trocadinhos (monetários, emocionais etc.). Eu não quero isso para mim.
— Você parece constrangido. Sabe, colega... Eu não queria isso para mim. Afinal, estudei até o terceiro grau para quê, não é mesmo? Mas... acredite: a realidade é o cão Cérbero a devorar os desejos de quem tenta escapar deste Tártaro.
— Não estou constrangido, e sim meio jururu. Coisas da vida urbana.
— Pois uma de minhas características é fazer a alegria dos outros. Com toda a urbanidade, é claro. Pegue o cartão, meu caro. Quando acontecer de a tristeza ser muita, verdadeiro encosto, me ligue. Agora preciso ir, meu ponto está chegando.
E levantou-se, guardando o leque, ajustando a saia e o cabelo. Ao aproximar-se da porta do meio, rebolando sem exageros, virou-se para mim e retomou o contralto na voz:
— Espero por você, meu querido. Não haverá arrependimento.
Houve quem risse, com certeza mais de um. Até mesmo eu, depois que o rubor do rosto esfriou a ponto de evaporar-se. Um riso amargurado, novamente buscando a paisagem que, vista de qualquer ponto, dentro ou fora do ônibus, parece sempre a mesma enquanto sigo envelhecendo e ocupando um tempo idealizado do ponto de vista ético, que na verdade jamais houve, e que provavelmente não terá tempo de materializar-se.
A ilustração foi extraída do site http://entrecontosecausos.blogspot.com.br/2013/10/na-janela-do-onibus.html
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