Por André Ricardo Valle Vasco Pereira*
Fui surpreendido hoje com uma foto tirada de Paulo Hartung (PMDB) diante de uma loja de roupas em Paris. O nome na fachada é Petit Bateau, ou seja, Barquinho. Trata-se de uma rede que possui vários pontos de venda na cidade. Uma postagem do Facebook afirmou que o governador licenciado estaria fazendo compras na Avenida Champs-Élysées, um dos lugares mais sofisticados do mundo. Só que, visivelmente, o estabelecimento em questão fica diante de uma calçada pequena, que não é o caso dos largos passeios da Champs-Élysées. É provável que a foto tenha sido tirada na Rue du Four, local bem menos elegante.
Mais curioso foi o meme que altera o nome da boutique para Petit Baiano, numa clara referência ao suposto apelido que Hartung teria nas planilhas da Odebrecht referentes a pagamentos de caixa 2 em campanhas eleitorais. A diabrite em questão se encaixa em um processo de desgaste pelo qual esta liderança vem passando. Primeiro foi a greve da Polícia Militar. Depois, a citação de seu nome em uma das delações premiadas da empreiteira. Agora, a foto. A versão oficial é a de que o governador tirou licença para se tratar de um câncer e teria viajado a conselho médico, para descansar. Mas já circulou também a acusação de que ele teria fugido de alguma ordem de prisão direcionada a governadores citados na delação da JBS.
Não importa o que é verdade ou não no envolvimento de Hartung nas delações e qual é a história por trás da foto em Paris. O fato é que ele vem sofrendo um desgaste político. Na Assembleia Legislativa, alguns deputados passam a usar o velho método de criar dificuldades para obter facilidades, “engrossando” a oposição, que, de fato, sempre se resumiu apenas a Sérgio Majeski (PSDB). Por enquanto, não se trata de um desafio real ao poder do governador.
Ocorre, porém, que se o inferno astral político de Hartung se ampliar, a “oposição” no Parlamento e as lideranças conservadoras na Sociedade terão condições de se despregar do seu controle. É lógico que algo assim produziria consequências no pleito do ano que vem. Mas qual é a relevância disto tudo?
Hartung implanta o neoliberalismo no Espírito Santo. Ao longo dos anos, foi capaz de atrair aliados à direita e à esquerda, esvaziando a oposição. O resultado foi o seguinte: não há debate programático no estado. As forças que poderiam ter se alimentado da tímida experiência social-democrata do PT no governo federal, ou seja, o PT local, o PSB e o PDT, abandonaram a aliança que desenharam em 2004 em troca de cargos e promessas eleitorais. Ao mesmo tempo, a CUT-ES e os sindicatos mais combativos de sua base mergulharam na luta corporativa, pragmática.
Na atual conjuntura, após o enorme desgaste ao qual o modelo do PT foi submetido e com a consequente ascensão do neoliberalismo em políticas econômicas e do conservadorismo em políticas sociais, Hartung vinha assumindo uma postura cada vez mais agressiva na defesa de suas ideias. Só que tudo tem um preço e o ajuste imposto por ele nessa fase de vacas magras gera insatisfações. Hoje, o setor político mais disposto ao debate programático se encontra no sindicalismo de esquerda, cuja base mais significativa está entre os funcionários públicos. Há, entretanto, um embate histórico entre eles, por um lado, e o PT e a CUT capixabas, por outro. Estas instituições, por sua vez, não rompem com Hartung. A enorme desradicalização do PT e o isolamento da esquerda não contribuem para a formação de um bloco de opinião alternativo ao discurso neoliberal em condições de disputar, de fato, as preferências da Sociedade.
Ao mesmo tempo, o espaço da direita militante no Espírito Santo, seja em movimentos de rua, na internet, na imprensa e nas igrejas neopentecostais cresceu muito, acompanhando a crise nacional do PT. De forma oportunista, certas lideranças mais tradicionais resolveram apostar nessa onda, como é o caso dos deputados federais Carlos Manato (SD) e Lelo Coimbra (PMDB), o primeiro na linha da direita mais obtusa e o segundo na defesa agressiva das reformas do governo Temer.
Hoje, Hartung continua comandando o processo político capixaba, mas a sua doença e o desgaste que se avoluma poderão abrir espaço para vôos solos de oportunistas ou mesmo de outsiders, de pessoas que se apresentem aos eleitores como descomprometidos com a “política profissional” e que alimentem discursos de ódio. O Cabo Camata foi um exemplo disso. Tal hipótese resultaria em um cenário de dispersão de forças à direita. O polo progressista, por sua vez, não só patina no processo de mobilização social como também não consegue pautar uma discussão programática alternativa e factível. O Espírito Santo já viveu uma fase semelhante (dispersão de forças à direita com uma esquerda dividida internamente e sem respostas alternativas à altura) nos anos 1990. O resultado foi a ascensão de variados focos de poder, que colonizaram o poder de Estado e drenaram seus recursos numa lógica predatória. Se isso voltar a acontecer, em um momento histórico prenhe de irracionalismos e ódios sociais, será pior que o neoliberalismo consequente de Hartung. Seremos obrigados, algum dia, a ter saudades da tirania “ilustrada” de Le Petit Baiano?
*professor do Departamento de História/UFES
Nota da redação: o autor tomou emprestado para título a marca modificada da loja como aparece em foto que circulou nas redes sociais.