A dívida estadual não é assunto novo. Ela assombra esses entes federativos desde a estabilização da moeda promovida pelo Plano Real a par das medidas graduais de enquadramento fiscal e financeiro adotadas pelo governo federal. Seus grandes beneficiários, antes disso, foram exatamente os estados de maior poder fiscal: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Os governos desses estados, à época, adotavam como prática avançar para além de sua base fiscal lançando mão principalmente do endividamento em títulos estaduais. Os bancos estaduais, ainda públicos, absorviam parcela desses títulos e configuravam, junto aqueles tesouros estaduais, um quadro crônico de endividamento, com transferência do seu ônus para o conjunto da federação. As renegociações de dívida infindáveis e a sua federalização eram a tônica daquela etapa.
A gradual implantação no Brasil de um regime de austeridade fiscal a partir dos anos 90 repercutiu no plano federativo em sucessivas medidas de enquadramento dos estados, utilizando as renegociações de dívida como oportunidade de exigir contrapartidas a esses entes. Funcionando como um FMI dos estados, o governo federal, por meio da Secretaria do Tesouro, impôs aos mesmos mais do que uma política de gerar superávits fiscais para pagar despesas financeiras. Desencadeou medidas de reforma do Estado nesse nível, tendo como componentes dos acordos as privatizações de estatais e bancos estaduais, além de introduzir gradualmente um padrão gerencialista/fiscalista de condução das administrações estaduais.
Ao final da década de 90 praticamente todos os estados assinaram acordos de renegociação do conjunto de suas dívidas e passaram a se enquadrar. Se do ponto de vista macroeconômico a medida foi favorável de um ponto de vista federativo não se pode dizer o mesmo. A despeito de ganhos com a extensão do prazo de pagamento por 30 anos, de taxas de juros fixas e menores do que as anteriormente praticadas, os acordos geraram níveis extremamente elevados de comprometimento da receita corrente com juros. Em especial para os quatro maiores estados devedores que passaram a destinar entre 13 a 15% da receita corrente líquida (RCL) ao pagamento de juros junto ao tesouro federal.
A Lei de Responsabilidade Fiscal e os desdobramentos legais que se seguiram consagraram limites de endividamento e de gastos com pessoal para as esferas subnacionais e por poderes. Configurou-se, assim, um novo modelo federativo que enquadrava os estados do ponto de vista financeiro e demandava dos mesmos um comportamento fiscal que tinha como prioridade abrir espaços nos gastos para a despesa financeira junto ao governo central. Esse modelo funcionou de certa forma, com pequenas correções, até a crise recente. Isso porque a queda das receitas em níveis significativos desde 2014 inseriu os estados, notadamente os com maior comprometimento financeiro, num ciclo de crise sem precedentes. Somada a má gestão de recursos e a corrupção chega-se a casos como o do estado do Rio de Janeiro no qual se instaura um verdadeiro caos gerencial.
Rompendo com o modelo que vigorava até então, no final do ano passado foi sancionada a Lei Complementar nº158 (PLC 257/2016), que renegociava dívidas estaduais, não obstante envolver condições insuficientes para dar saída a gravidade da crise em curso. Por outro lado, embutia no projeto original proposto pelo Executivo federal contrapartidas fiscais duras, posteriormente retiradas por decisão parlamentar.
No contexto das barganhas junto às bancadas federais para a aprovação das reformas trabalhista e previdenciária, foi enviado este ano à Câmara um novo projeto de lei complementar voltado para renegociação de dívidas estaduais. E nele novamente o governo inseriu o “cavalo de Troia” das duras contrapartidas fiscais e que desta vez foram aprovadas.
A Lei Complementar nº 159 foi sancionada em 19 de maio de 2017 (PLP 343/2017) e criou o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e Distrito federal (RRF). Ela visa atender estritamente aos estados que estão em grave situação fiscal e forte comprometimento com gastos com pessoal e serviço da dívida. Para participarem do RRF, os estados nessas condições deverão apresentar um “plano de recuperação”, a ser aprovado pelo Ministério da Fazenda e homologado pelo presidente da República. A proposta suspende os pagamentos dos juros da dívida desde que sejam adotadas as medidas de ajuste fiscal. Tal como nos acordos de fins dos 90 também requer nova investida de privatizações além de exigir congelamento de salários e de contratações de pessoal.
Numa frente paralela, num segundo movimento para garantir a aprovação das reformas do seu interesse, o governo federal editou a medida provisória nº 778 de 16 de maio de 2017 que renegocia a dívida dos estados, Distrito Federal e munícipios junto ao INSS. Ela parcela esses débitos em duzentas vezes (quase 17 anos), pagos esse ano 2,4% do total da divida consolidada em seis parcelas. O restante será dividido em cento e noventa e quatro vezes iniciando em janeiro de 2018, com as seguintes reduções: 25% das “multas de mora, de ofício e isoladas e dos encargos legais, inclusive honorários advocatícios”; e 80% dos juros de mora. Deve-se pontuar que é notória a prática dos municípios e estados no Brasil de acumular débitos junto ao tesouro federal referentes a contribuições sociais. O perfil da dívida municipal, em particular, é exatamente dessa natureza denotando os mesmos utilizam esse tipo de endividamento como variável de ajuste orçamentário.
Não obstante, o aspecto central que se quer destacar é o processo de longo prazo no qual os governos estaduais, especialmente os de maior peso, tornaram-se prisioneiros de uma armadilha financeira que se arrasta desde fins dos 90. Essa armadilha enreda a federação brasileira para um Federalismo sem estados, tendo em vista sua baixa disponibilidade fiscal para cumprir encargos nas áreas de interesse da população. Por outro lado, qualquer tentativa de mitigar tal situação implica amplificar a dívida do governo central, ou – para o caso da dívida em contribuições previdenciárias - ampliar o déficit da previdência na extensão correspondente ao alívio concedido aos entes subnacionais. A armadilha da dívida vai tornando o Estado brasileiro, em todos os níveis que se considere, refém de um samba de uma nota só: empreender de maneira continuada no tempo arrocho fiscal para arcar com despesas financeiras.
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