Helder Gomes*
A mídia proprietária não cansa de repetir que o mercado reagiu assim ou assado diante do anúncio de alguma atitude governamental. Contudo, apesar de aparecer como um ente misterioso a impor suas vontades, o que chamam de mercado nada mais é que um conjunto restrito de pessoas que, mesmo de carne e osso, se diferenciam das demais por ter alcançado, por meios diversos, um determinado poder de comando sobre o que fazer com boa parte da riqueza produzida na sociedade.
A busca pela posse de parcelas cada vez maiores da riqueza social produzida é o motor do chamado mercado e, para isso, vale de tudo: a exploração do trabalho alheio, a destruição da natureza, o uso da violência etc.
No passado predominou o uso da violência bruta. Em especial, contra os povos tradicionais, que eram escravizados para a produção das riquezas que interessavam ao povo branco da Europa. Contudo, também se utilizou muito a força contra os concorrentes, nas disputas entre os grupos econômicos pelo controle das terras, do comércio, do tráfico e da pirataria. O resultado principal foi a destruição de diversas civilizações por todo o mundo, para gerar uma grande acumulação de riquezas, que garantiria o capital inicial para os negócios das grandes empresas capitalistas formadas a partir dali. O marco para a nova civilização, capitalista, começava, portanto, a partir da guerra, do saque, da pilhagem, da escravidão e do extermínio. Como se vê, já começou tudo errado!
A solução lógica para consolidar as novas relações sociais de exploração foi recuperar a noção de Estado que, dentro de cada território nacional, garantiria as normas de conduta e de direito, estruturadas em forma de lei e fundamentadas na inviolabilidade da posse sobre alguma propriedade.
A parcela maior da riqueza social, apropriada pela burguesia emergente, passou a assumir formas diferenciadas de lucro industrial, juros, lucro comercial, renda da terra (alugueis etc.) e, ainda, foram criadas outras formas de rendimento provindas da especulação. É interessante notar que quanto mais se desenvolvia o famoso mercado mais e mais se difundia a especulação de toda ordem. Como num passe de mágica, de tempos em tempos as pessoas passavam a acreditar que seria possível acumular dinheiro, sem se preocupar tanto com a produção de riquezas, incentivando boa parte dos chamados operadores do mercado a reproduzirem a acumulação fictícia por meio da especulação. Mas, como foi possível criar tanta oportunidade para a especulação?
Uma das mais importantes invenções do mercado foi a antecipação de gastos para o consumo, para os investimentos e, também, para outras aplicações públicas e privadas por meio do sistema de crédito. Além dos juros e encargos, é possível a apropriação de rendimentos extras, provindos da especulação sobre o risco de cada empréstimo, como os chamados spreads bancários.
Outra grande fórmula de especulação tem sido o mercado de ações uma vez que o simples fato de colocar ações em leilão já sugere um descolamento de seu preço daquilo que efetivamente a empresa vale. Os preços das empresas, ou de suas partes, passam a oscilar a partir de um conjunto de informações que os especuladores fazem circular, muitas delas totalmente afastadas da situação real das condições da produção e da venda das mercadorias fabricadas.
Em cada país, o Estado tenta regular boa parte dessas operações de compra e venda, de endividamento e de especulação. Entretanto, o Estado é, também, um importante operador do mercado, pois, promove investimentos, faz compras para manter alguns serviços públicos funcionando, financia por meio de empréstimos boa parte dos investimentos privados e, também, o mais importante, é um dos principais tomadores de empréstimos internos e externos por meio de títulos da dívida pública.
Diante da incapacidade de solução da grave crise econômica, iniciada na virada para os anos 1970, o mundo capitalista tratou de administrá-la, incentivando a especulação. Entretanto, não se trata apenas da criação de alternativas de aplicação dos lucros e rendimentos de toda natureza. Trata-se de um momento histórico do capitalismo mundial, no qual a dominação do capital especulativo interfere em todas as atividades econômicas, inclusive impondo aos governos políticas macroeconômicas vinculadas à ampliação do endividamento público e a liberalização dos controles sobre os movimentos de capitais, garantindo o livre trânsito especulativo.
A desumanidade do domínio exercido pelo capital especulativo se manifesta na intensificação da exploração do trabalho. Cada vez mais o mundo experimenta a incapacidade dos Estados nacionais em garantir um padrão mínimo de proteção social. Isso ocorre na mesma medida em que cresce o endividamento público e, mais e mais, se exige a necessidade de geração de superávits fiscais, a partir de cortes nos gastos públicos essenciais (saúde, saneamento ambiental, educação, segurança etc.). Tudo isso para que sobre cada vez mais recursos que são orientados para a ciranda especulativa.
A informalidade também ganhou grande espaço nesse ambiente que mais parece um grande cassino. Aos poucos foram liberados os controles sobre as transações cambiais, cujo ápice se revela na multiplicação de paraísos fiscais. Empresas off-shore atuam em paraísos fiscais, em certos casos, como escoadouro ilegal de recursos financeiros de origem desconhecida (caixa-2 etc.), visando à sonegação tributária e, em outros casos, como receptoras de empréstimos externos, muitas vezes operações casadas de fluxo e refluxo de dólares, sem a necessidade de identificação.
As marcas fundamentais das relações capitalistas atuais devem ser entendidas, portanto, como um processo avassalador de dominação econômica e política pelo capital especulativo, em meio a uma profunda crise de investimentos, cuja dimensão levou a um crescimento de formas criativas de acumulação primitiva (violenta) de capital. Abriu-se um terreno fértil para a reciclagem ilícita de recursos monetários das máfias do crime organizado, elevando o poder econômico de controladores de atividades criminosas, tais como o contrabando de mercadorias, o tráfico de armas e de drogas, e até de pessoas, como na época da escravidão.
Ou seja, as próprias relações mercantis capitalistas, em crise, criaram alternativas de acumulação de capital, que acabam acirrando a crise, exigindo soluções políticas de difícil implantação. Estas envolvem e confundem atividades formais e informais, criando um grave processo de degeneração política e institucional.
Por tudo isso, percebe-se que o desenvolvimento das contradições do capitalismo acabou por criar um castelo de cartas cada vez mais vulnerável e instável. Como se vê, o que chamam na TV de crise financeira tem raízes muito mais profundas e provoca impactos de grande dimensão há mais de quarenta anos. O que os jornais anunciam agora é mais um sintoma dessa longa crise estrutural do capitalismo, mas, também, pode ser uma demonstração de que a doença alcançou patamares irreversíveis.
*Economista e doutor em Política Social.
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