Por Erlon José Paschoal*
Por vezes faz bem reler autores que questionam as estruturas tidas como inabaláveis e perenes, tanto na arte quanto na vida. Como sabemos é intrínseca à criação artística certa insubordinação e crítica da ordem vigente. Muitos artistas e filósofos reformularam conceitos, elaboraram ideais utópicos e propuseram novas linguagens para se abordar e compreender a realidade. Entre eles, por exemplo, Karl Marx, que disseca as estruturas e relações no mundo capitalista revelando de maneira implacável a vil capacidade humana de não (querer) perceber ou tratar com indiferença o sofrimento causado a aqueles que nos dão lucro, a exploração aberta, cínica e direta do outro, e reduzindo a dignidade humana a um simples valor de troca onde a única liberdade válida é a proporcionada pelo dinheiro. Autor importante, sobretudo, neste momento de intenso retrocesso das conquistas democráticas brasileiras, conduzido por quadrilhas interessadas no desmanche das políticas públicas inclusivas e dos direitos sociais.
Fundamental lembrarmo-nos também de Friedrich Nietzsche com sua virulência, sua crença na reformulação dos valores e na necessidade de reinventar o ser humano. Enfim há inúmeros criadores que estimularam na espécie humana o exercício do refazer, do revolver e do retomar. Neste caso gostaria de destacar o teatrólogo francês Antonin Artaud, cuja principal obra “O Teatro e Seu Duplo” apareceu novamente em minhas mãos proporcionando-me assim o prazer de uma releitura.
Artaud exalta a entrega às forças naturais primitivas, o rompimento das amarras sociais e almeja atingir as dimensões mais profundas do espírito, provocando o encanto e o fascínio. Faz uso de termos abstratos e ambíguos, tais como Guerreiro, Duplo, Peste, Crueldade, colocando no palco não mais temas psicológicos ou sociais, mas míticos e cósmicos.
Suas descrições do teatro ideal são virulentas, poéticas e pulsivamente emotivas, por vezes bombásticas e concludentes. A sua premência de se expressar e a sua rejeição do abuso predominante e excessivo das palavras, leva-o à impossibilidade de compartilhar suas ideias com seus contemporâneos, e ao vazio: “Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”. Desse modo, em sua não definição, a linguagem concreta, espacial e física do teatro, “faz surgir a ideia de uma certa poesia no espaço que se confunde com a bruxaria”.
Artaud foi um vate, um visionário, que dialogava com as forças inconscientes e pretendia resgatar o poder primitivo e transformador do teatro. Ao mesmo tempo em que rejeitava as formas teatrais então convencionais, ele almejava revolucionar o convívio social, retomando tradições ocidentais instigadoras e sendo fortemente influenciados pelo teatro oriental.
Recorrendo às imagens presentes nas pinturas de Grünewald, Brueguel, Goya e Bosch, Artaud vislumbra um espetáculo ideal, composto por verdadeiras tentações, capaz de extrair as forças primitivas presentes nos mitos e no inconsciente das massas, denominando-o Teatro da Crueldade. Nele, tal como nos ritos e na magia, o público deve ser levado ao delírio e ao êxtase, vivenciando a totalidade física e espiritual do Ser. Os seus ingredientes básicos são a ruptura, a criação de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra.
Em sua busca de um teatro que despertasse os nervos e o coração dos homens, Artaud chega à formulação de uma concepção teatral que insufle miticamente as massas, levando-as a acreditar nos sonhos apresentados no palco - mas como sonhos de fato e não como “decalque da realidade” - estimulando no público a “liberdade mágica do sonho”. Artaud é categórico: “farei aquilo com que sonhei, ou não farei nada”.
É preciso sem dúvida coragem para ler e cultivar autores, cujas ideias abalam nossas certezas e insuflam vida em nossas atitudes e em nossos gestos automáticos. Ainda bem que eles existem.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.
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