Por Eduardo Selga*
Quem escreve esteticamente ou procura fazer da palavra escrita um instrumento de reflexão sobre essa vida que se nos entorna, usar o verbo como um periscópio, por inevitável vive de impressões. Precisa delas. Afinal, são matérias-primas. As coisas acontecem, naturais, fabricadas ou ainda naturalmente fabricadas, e o escrevinhador delas se apropria, não para “repeti-las” no despovoado universo do papel em branco ou da tela do computador, e sim para, de certa maneira e conforme seus valores, traduzi-las ou explicá-las para si mesmo, muito mais que para outros.
Tudo isso porque fiquei intrigado com a matéria de autoria do jornalista Kiko Nogueira, publicada no site Diário do Centro do Mundo em 24 de julho deste ano, em que diz “viramos um país de mentirosos compulsivos”. Pode haver muita verdade nisso.
O confuso momento político em que vivemos, uma pirambeira disfarçada de ponte ou pinguela onde fomos atirados por diversas e antagônicas forças, parece ter causado uma espécie de estouro de boiada na consciência política da sociedade inteira. Se antes decisões de Estado, de governo ou atitudes de dirigentes eram assuntos restritos a certos círculos e condicionados ao calendário eleitoral, hoje é matéria que povoa cafezinhos nos bares e viagens nos coletivos urbanos. Claro, não é que de repente tenha surgido em cada esquina um Paulo Francis com opiniões e posicionamentos abalizados, mas se comentam medidas provisórias e desmontes travestidos de reformas sem a antiga ojeriza que o assunto causava.
Com esse fenômeno, parece que se quer “tirar o atraso”, algo equivalente a amadurecer frutas verdes na marra. Assim é que se utilizam argumentos improvisados, essencialistas, para encontrar, tanto mais rápido quanto possível, culpados e inocentes, bestas-feras e santos. Maniqueisticamente organizam-se os personagens no cenário e numa narrativa que, a depender do lado da arquibancada, muda bastante. Às vezes de ponta à cabeça, condenando inocentes e inocentando culpados.
No entanto, a simplificação contraria a dinâmica da boa política, arte e ciência que guarda semelhança com o cálculo, porém, as variáveis envolvidas são da ordem do humano e do Imponderável de Almeida.
Se de um lado da sociedade parece existir vontade sincera de entender os acontecimentos, embora muitas vezes por equivocados caminhos, por outro há que se perguntar: como apreender toda a complexidade envolvida nos processos políticos, ou ao menos boa parte dela? Há no mínimo dois obstáculos relevantes: primeiro, a verdade, essa construção discursiva, costuma chegar ao outrora passivo consumidor de notícia repleta de aspas por meio da imprensa, seja monopolista, seja alternativa; depois, nosso modelo educacional menospreza solenemente a interpretação de texto e contexto, porque para esse sistema o bom exercício da linguagem não é algo que se adquira nas salas de aula e na prática, e sim uma espécie de dom com o qual já se nasce.
Na ausência das indispensáveis ferramentas para a interpretação do forçosamente multifacetado texto político, o que se faz? Ficar fora do debate nem pensar. Alguma coisa precisa ser dita em tempos extremados, nem que seja para dar uma de Leão da Montanha, da Hanna-Barbera: “saída estratégica pela direita (ou esquerda)”. A solução é simples: fabricam-se fatos, personagens e enredos por meio da mentira. Não a fofoca mal ajambrada, desmontável como um castelo de Lego, e sim as tais “fake-news” e outras sofisticações, a tal ponto que a face da mentira fica indiscernível do rosto da verdade, exigindo algum tempo para que o desmonte aconteça. Enquanto isso não se dá, os estragos decorrentes assumem o protagonismo.
Acredito que uma das características marcantes do povo brasileiro seja sua forte tendência para elaborar os fatos da realidade a partir da lógica ficcional (certamente um dos motivos de tanto sucesso das telenovelas). Como a ficção é universo controlado, muitas vezes prazeroso para quem dele desfruta, não é surpreendente a mentira como arma política, aquela invenção que funciona muito bem para “explicar” a santidade da figura pública X ou o nível de maldição de Y.
A mentira política conta com um importante instrumento no processo de “fabricação de verdades”: a palavra de ordem, que não é prerrogativa da esquerda. Creio seja importante pararmos de raciocinar por intermédio delas, verdadeiras muletas discursivas, e tentarmos enxergar a realidade escondida por detrás dos cenários construídos por elas. O futuro do Brasil demanda essa lucidez.
Alguém pode perguntar: “sim, mas e o Kiko”? Não sou muito apreciador do formato do site DCM, excessivamente minimalista, mas quando o autor do artigo afirma, relativamente à mentira compulsiva que ele enxerga na sociedade brasileira, “não éramos assim. Ou éramos e não sabíamos. O golpe elevou à categoria de arte aceitável o que era um desvio de caráter”, eu fico com a segunda possibilidade. Sim, éramos. Somos. Antes, exercitávamos essa espécie de ficção social de outras formas, absorvidas pela “normalidade” por não haver nelas o elemento claramente político, mas agora escancaramos. Porém, falar em compulsão talvez seja um exagero que implicaria admitir nossa sociedade enquanto corpo doente, possuída pela mitomania. É possível que esteja, de fato, mas não é um organismo enfermo por natureza, como nenhuma sociedade o é. Prefiro admitir uma pulsão no sentido de ficcionalizar a vida.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
Nota do autor: A ilustração foi extraída do site Pintertest.com
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