Eu já joguei cartas com a Morte e venci. Mas sei que foi só dessa vez. Haverá um dia, no entanto, em que ela vai ganhar de mim. Ela sempre ganha, é inevitável. A única certeza que temos nesta vida. Mas, por que temos, a maioria de nós, tanta dificuldade em aceitar isso? Morrer é o único jogo de cartas marcadas no qual jogar é obrigatório e perder é inevitável.
Há quem não fale jamais sobre o assunto. Há quem certamente sequer passará do primeiro parágrafo desta crônica. É uma pena. De fato, historicamente, nossa sociedade judaico-cristã e ocidental tem uma dificuldade enorme acerca do tema. Se morrer é perder, que seja quando for a hora de jogar. O problema todo é que, mesmo sabendo da perda, conhecer as cartas não é de todo ruim. Se for para perder, que seja com dignidade, ao menos.
Eu conheci as cartas e, ardiloso, ganhei a partida. Tive como prêmio o “gostinho” do outro lado. Sei que o assunto é polêmico, mas, sei, também, que o que eu vi foi muito contundente. Na minha experiência com a Morte, pude perceber que há um “lado de lá”, tão negligenciado pela maioria das pessoas, sobretudo dos religiosos. É como se estivéssemos tão ligados a isto aqui que víssemos apenas a dimensão da perda. Mas, e se, mesmo perdendo, tivéssemos um “prêmio” a nossa espera?
Em muitas culturas, a Morte é encarada de uma forma mais “natural” (por mais chocante que isso possa parecer). Em certos países orientais, o luto é na cor branca, que significa a “pureza”, o “renascimento”. Em algumas tribos indígenas, o ente se torna uma árvore, ficando ali, para sempre na memória. Na nossa, o peso. A imagem das carnes apodrecendo. O choro de quem pensa apenas na ausência. Mas será que só há ausência com a Morte? Não seria a lembrança uma outra forma de presença?
Viver é morrer aos pouquinhos. Sei que, um dia, vou me reencontrar com a Morte, vamos jogar cartas e eu vou perder. Não tenho medo disso, no entanto. Porque, nesse interregno entre mim e o jogo, há tanto a se fazer e muito o que me preocupar. Já perdi pessoas que perderam o jogo, algumas, até por vontade de abreviá-lo. Uma lástima. A beleza da vida é jamais se importar com isso. Quero ir sereno para minha última partida, na certeza de que há um outro caminho a percorrer. E, mesmo que você, leitor, não acredite nisso, pense que ainda vale a pena buscar a felicidade dos dias que nos separam da cartada final.
* Advogado e Escritor; Publica também em anaximandroamorim.com.br
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