Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Coube à presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Carmen Lúcia, desempatar o julgamento realizado no dia 11 de outubro sobre a ação que questionava a prerrogativa dessa instituição da República de estabelecer medidas cautelares para parlamentares no exercício de seu mandato. No ano passado, por unanimidade de seus membros e sem sofrer pressões contrárias do Congresso neste sentido, o Supremo decidiu, por unanimidade, em processo idêntico envolvendo o deputado Eduardo Cunha, que dispunha dessa autonomia. Dessa vez, estava em jogo a mesma ação, mas que envolvia diretamente outra figura política: o senador Aécio Neves, do PSDB de Minas Gerais.
O ministro Edson Fachin, relator do processo, manteve o entendimento do ano passado, considerando o STF com autonomia para decretar medidas cautelares, no que foi seguido por outros quatro ministros, com argumentos de que cabe ao Supremo zelar pela imunidade constitucional do parlamentar no exercício de suas funções, mas não pela sua impunidade em caso do cometimento de crimes, pois, afinal, o mandato a ele delegado pela população não contempla essa possibilidade, mas apenas a de representá-la. Numa leitura torta da Constituição, alguns ministros mudaram de opinião neste pouco tempo e defenderam a tese que que o mandato só pode ser retirado pelos representantes do povo, ou seja, pelo Congresso.
Toda essa confusão que se tem tornado rotineira nas decisões do STF nos últimos tempos parece residir na incompreensão do significado do mandato. Quando a população elege um político para o desempenho da atividade parlamentar, o objetivo é de que este defenda seus interesses na Câmara dos Deputados ou os de seu estado ou região no Senado Federal. A imunidade parlamentar existe exatamente para permitir essa representação sem as limitações colocadas por regras antidemocráticas que podem tolher suas ações. O cometimento de crimes de qualquer natureza não se inclui entre as delegações que lhe são atribuídas. Se isso ocorrer, o seu julgamento passa a se dar no âmbito do código penal, nada mais havendo a ser considerado nas prerrogativas da imunidade parlamentar para essa não se transformar em impunidade.
É claro que se um leigo, como nós, entende isso, muito mais os ministros do Supremo. O que fica difícil de entender é como a interpretação da lei pode mudar em tão pouco tempo se essa não recebeu nenhuma alteração, a não ser que essa mudança tenha ocorrido em função da mudança dos atores que estão sendo julgados, o que significaria dizer que “se todos são iguais perante a lei, alguns são mais iguais do que os outros”, uma contradição do espírito democrático.
A decisão salomônica do STF tomada com grande contorcionismo jurídico, à medida que agrada o Congresso por lhe dar a palavra final nessa questão e não deixa em maus lençóis o próprio STF, já que poderá decretar medidas cautelares sobre os parlamentares, embora essas dependam do aval da classe política, parece ter deixado de lado o interesse do cidadão e da democracia.
De um lado, por tornar oficial, na prática, a possibilidade do parlamentar poder cometer crimes comuns na delegação que lhe é atribuída pela população, sem que a mesma seja sequer consultada sobre isso. De outro, por abrir o caminho para que isso possa ocorrer, já que, neste caso, o parlamentar não poderá ser alcançado pelo braço da lei, no caso de seus pares não concordarem com sua condenação. Um retrocesso em se tratando da democracia: se o STF, fórum no qual os políticos são julgados por desfrutarem de foro privilegiado não pode impedir crimes em curso, quem impedirá?
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede e de O Beltrano, e autor, entre outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980=2010”
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