Em minha opinião está claro que o assassinato da vereadora do PSOL carioca, Marielle Franco, é mais que a eliminação de alguém que incomodava em demasia o crime organizado que de há muito se abriga, vive lépido e faceiro no interior da Polícia Militar do Rio de Janeiro. É mais que um possível recado pirracento à tresloucada intervenção das Forças Armadas que, mesmo sendo artificial, no sentido de que não reprime crime nenhum e atende a interesses escusos, atrapalha os negócios.
O assassinato de Marielle foi um atentado terrorista. Foi o exercício de um ato político fora da institucionalidade dando fim à vida de quem conquistara legitimamente o direito de exercer atos políticos institucionais. Trata-se, portanto, de uma quebra de paradigma. Na verdade, mais uma ruptura. A rápida erosão do tecido político desde o golpe travestido de impeachment, tentando tirar de cena representantes efetivamente comprometidos com uma visão de Estado que inclua a população pobre, deságua nesse episódio. Certamente outros virão, se a direita perseverar na irresponsabilidade de ferir de morte o Estado de direito e se a esquerda não conseguir encontrar os adequados instrumentos de combate.
Não foi um atentado qualquer. Noutras partes do mundo, as organizações terroristas rapidamente assumem os sequestros, assassinatos ou as explosões de bomba, porque pretendem deixar claras para a sociedade suas intenções políticas. Dentre organizações inativas e ativas, é o caso do ETA, do IRA, do Sendero Luminoso, das FARC’s e do ISIS. Aqui, no entanto, o terrorismo não tem cara. Não há uma entidade que diz “fomos nós, por essa ou por aquela razão”, muito provavelmente porque a bandeira defendida é absolutamente indefensável junto à sociedade. De um modo similar, só a título de exemplo, do quão seria impossível o projeto criminoso e terrorista de Temer encontrar eco em um processo eleitoral.
A execução de Marielle lembra o caso da bomba do Riocentro, de 1981, cujos responsáveis só foram descobertos porque ela explodiu antes da hora, no colo de um militar, quando a intenção era detonar uma comemoração ao Dia do Trabalhador, no mesmo Rio de Janeiro.
O golpe contra outra mulher, a presidente Dilma, evidentemente não foi apenas para derrubar o partido político que controlava o centro do poder do Estado brasileiro. Foi uma expressão contundente da luta de classes, essa categoria que pretendem apagar do universo conceitual político. A elite, para quem lucrar pouco é igual a ter prejuízo, para quem o privilégio é uma questão identitária e, portanto, é incabível admitir que a “ralé” os tenha, a elite assumiu o poder para impor a sua ordem e a sua concepção de progresso num momento em que o capitalismo sofre no mundo o desgaste de suas engrenagens.
Comandado por forças externas e tendo na elite tupiniquim seus capitães do mato, o Brasil pode ser um laboratório de uma nova configuração de Estado nacional capitalista, muitíssimo mais desumano, na tentativa de salvar o capitalismo e, consequentemente, o país que o comanda no mundo.
O atentado terrorista contra a vereadora do PSOL pode ter sido exercido por grupos umbilicalmente ligados a essa ideia, enraizada na violência explícita. É uma ideia que não admite povo, exceto como mão de obra silenciosa e passiva. Se o povo é inaceitável nessa nova engrenagem que já nascerá velhíssima, eliminar lideranças políticas que efetivamente representem o povão tem alto valor simbólico. É algo que pode calar fundo no imaginário, causando medo. E o medo imobiliza. É o que pretendem com Lula, a despeito de a imagem dele não corresponder a muitas de suas práticas políticas. É o que fizeram com Marielle, e ainda farão mais se não se lhe opuserem barreiras políticas.
Nesse sentido, entendo que cabe ao PSOL e aos partidos postos à esquerda tratar o fato como ele exige: politicamente. Não se trata de mais uma vítima da violência urbana. Foi um atentado terrorista e como tal deve ser tratado pelas esquerdas, sem cair no discurso da direita, cuja mídia pretende sequestrar a simbologia de Marielle por meio da emoção. A vereadora é vista como heroína, lutadora (e tudo isso é verdade), mas o viés político do trabalho feito por ela desenvolvido é apagado. Querem transformá-la em estátua, mas sem significado para além da imobilidade do mármore ou do bronze.
O golpe mata o povo e sua representação. Contra isso é preciso ação política inteligente. E urgente.
* Professor e Escritor.
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