De vez em quando, aparece para mim um daqueles “memes” de rede social que, em princípio, têm papel de fazer rir. Como o da suposta promoção de uma pizza, com sabor, data, local, nome, telefone e tudo mais o que se pode levar em conta e, mais abaixo, uma saraivada de perguntas de interessados que, ao que parece, não “entenderam” o cartaz. Uma crítica velada a um fenômeno que assola o país, de norte a sul: as pessoas perderam a capacidade de interpretar, nem que seja, o mais sutil dos textos, e o “meme”, de engraçado, revela (mais) uma dimensão preocupante dos nossos tempos.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “interpretar” significa “explicar, traduzir; compreender; avaliar, decidir”. Mais do que juntar letras e palavras, interpretar é ir além, compreendendo aquilo que se leu. Parece óbvio dizer uma coisa dessas, mas, em um país em que a quase totalidade das pessoas é considerada semianalfabeta, até o óbvio se torna a mais complicada das tarefas. Em tempo: se você acha que tal estado de coisas só acontece com aquele menino de escola pública de periferia, você está redondamente enganado: há muito estudante universitário incapaz de interpretar um texto, do “meme” do parágrafo anterior a um rebuscado poema. A coisa é mais séria do que a gente pensa.
O problema é que interpretar é uma tarefa complexa, que move mais do que alfabetizar: ela passa por estados mentais, psíquicos e até culturais. Enquanto professor, muitas vezes, eu percebo uma dificuldade dos alunos em formar um pensamento mais abstrato. Isso se dá, por exemplo, quando eu trabalho uma música ou um poema. Certa feita, ao ouvir a bela canção "Codinome Beija-flor", uma jovem não entendeu a expressão "segredos de liquidificador". Qual não foi a surpresa dela ao saber que, dentre tantas interpretações possíveis, os autores não quiseram fazer uma analogia da hélice do eletrodoméstico com uma língua, acariciando em círculos a orelha da pessoa amada?
Tudo é uma questão interpretação. O fato é que anos e anos de negligência educacional forjaram uma massa de pessoas incapazes de passar das camadas mais superficiais de linguagem. O brasileiro foi, historicamente, educado para ser mão de obra da indústria que nascia no século passado. Assim, saber ler para entender um manual de instrução era suficiente. Ler para entender o mundo, perigoso. O problema, é que esse pensamento raso cobra seu preço no começo deste século: estamos passando por uma crise política e moral escancarada neste momento da História. Porém, as pessoas não são, em sua maioria, capazes de entender nem as origens, nem os desdobramentos disso. O resultado é o que vemos, sobretudo, em redes sociais: críticas açodadas, que, em muito, repetem preconceitos e dão azo a todo tipo de oportunismo.
Quando vejo alguém tentando “justificar” a morte (brutal) de uma vereadora, dizendo que ela “mexia com coisa errada”, eu me arrepio. Ser incapaz de entender que posso me apiedar de alguém que não tem nada a ver comigo, mas que posso entender o humano por trás disso, me faz pensar até que ponto chegamos. Nossa generalizada visão obtusa de mundo clama por soluções práticas, muitas vezes, de extermínio, porque não nos foi dado pensar. Isso é lógico: o que nos diferencia dos animais é a dimensão simbólica, abstrata das coisas. Se isso nos é sonegado, pouco avançamos do estado animalesco. Voltamos àquele “estado da natureza” hobbesiano, de luta de todos contra todos. Em que até a interpretação de um simples “meme” de internet se torna a uma difícil tarefa.
*Advogado e Escritor.
Foto: esquemaria.com.br via internet.
Artigo publicado também em anaximandroamorim.com.br
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