No Brasil, majoritariamente, o que chamamos de esquerda acredita de modo quase religioso nas instituições de um Estado que, por si só, é estrutura conservadora do status quo. Quem presta atenção ao trabalho de deputados federais e senadores desse campo político volta e meia percebe alguém reclamando da inobservância do “republicanismo” por parte de algum deputado ou senador da direita, como se a ética e a honestidade política fossem valores que ela, a direita, cultivasse e que apenas por algum deslize, equívoco político ou eventualidade não estão sendo considerados.
Na verdade, a direita desdenha de tais valores, exceto quando do ponto de vista estratégico interessa-lhe assumir um discurso “republicano”. Ou seja, ética e honestidade política são, para esse grupo, questão de cálculo, um algoritmo, não algo que seja inseparável do exercício político. Se deixar de ser do interesse obedecer as regras do “jogo político” (e “jogo” aqui é palavra que se encaixa muito bem), a direita ignora solenemente as normas do acordo estabelecido entre as diversas forças que compõem a sociedade. Simples assim. Nenhum trauma ou dores de consciência. Em nome de uma república que represente interesses dela.
Essa postura da esquerda de que falo, que se relaciona com o fato de ela valorizar o Estado enquanto instrumento de justiça social e, portanto, estimar todas as suas instâncias e ritos, é ingênua na medida em que olvida a natureza do Estado burguês. O resultado desse comportamento é, não raro, o pasmo e a inércia diante de uma direita até à medula antiética e antirrepublicana no Congresso. É como se ela, a esquerda, ao frequentar legitimamente espaços de poder no Estado, se sentisse na obrigação de deixar as sandálias no tapete de entrada, pedir licença e persignar-se.
A atitude ingênua da esquerda de certa maneira se explica, pois é fruto de alguns ideais republicanos fincados no terreno político desde a luta contra a subserviência ao senhor da casa-grande e a países que pretendiam ter em suas mãos nosso destino. Ideais de liberdade para todos e soberania nacional. A república, portanto, vista como solução libertária, exige comportamentos compatíveis com ela. Mas quem disse que, embora estejamos numa república, a direita de fato se guia pela cartilha desses valores, mormente sua facção mais aloprada?
Ter uma atitude republicana é marco civilizatório, é tratar sem iniquidade a coisa pública, para além de interesses menores, tendo por objetivo o bem comum. Acontece que a direita nativa desconhece este conceito, pois o Estado brasileiro, desde a sua formação, sempre esteve inteiramente a serviço das elites. “Bem comum”, para essa parcela da sociedade, não é o beneficio da maioria da população, e sim a satisfação de interesses da maioria da elite. Afinal, são uns democratas.
Há muita idealização nesse “republicanismo” parlamentar, o que prejudica o trabalho da própria esquerda pelas mesmas liberdade — eterna luta — e soberania nacional — altamente ameaçada nos dias de hoje —. Ritual demais colabora com o establishment porque é atitude endurecida, que não se abre. Senão, vejamos: após a “surpreendente” vitória do impedimento da presidenta na Câmara dos Deputados, a maioria da esquerda acreditava que a história seria outra no Senado; quando veio a condenação em primeira instância do ex-presidente Lula, havia fé de que o TRF4 faria justiça, e como ele não fez, o STF honraria a Constituição. O resultado é que ela foi solenemente rasgada pelos togados. Por um placar apertado, mas foi. E nesse processo, para onde estamos indo nós, o povo brasileiro, e a república cujo atual desenho é tão endeusado pela esquerda?
Se obervarmos o comportamento desse campo político no Congresso, percebemos às vezes retóricas explosivas, até mesmo sedutoras porque aparentemente radicais, mas que não se refletem em atitudes no mundo das coisas concretas. São discursos que sobrevivem apenas dentro da bolha parlamentar. Além disso, temos como que uma esquerda espírita, ou seja (e aqui perdoem o trocadilho), ela adora frequentar o centro, o espectro político de centro-esquerda. Nesse campo ela finca o pé em determinada questão de modo bem resoluto, aparentemente inarredável, mas só até a página seguinte, quando as vozes do “equilíbrio” e da “sensatez” começam a manifestar-se. Aí, o que era questão de honra transforma-se, para usar um termo do parlamento, em questão de ordem.
Essa atitude meio camaleônica, capituladora, esse vai-não vai num momento político que exige firmeza, levanta uma questão na qual não mergulharei aqui: a centro-esquerda é um teatro, um ato de covardia?
A prisão arbitrária do ex-presidente Lula, figura maior de um partido de centro-esquerda, equivocadamente visto pelo senso comum como esquerda, mostra que este campo precisa deixar de comportar-se como um Gasparzinho, um fantasminha politicamente camarada (fantasmas ao mesmo tempo ocupam e não ocupam um espaço) e apresentar ao Brasil suas armas de combate ao autoritarismo institucional que se concretiza num crescente. E o faz de maneira mais espertalhona que 1964 porque travestida de legalidade.
Já deu.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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