Por Helder Gomes*
As singularidades de organização política nas novas nações emancipadas do julgo colonial devem ser entendidas como parte fundamental do processo de formação da etapa superior do capitalismo em nível mundial no século XIX. Naquele contexto, o Estado capitalista dependente foi forjado inorganicamente, de forma a garantir a transferência de riquezas para o exterior, por meio de regimes políticos de caráter autoritário. De um lado, o Estado subordinado deveria garantir a apropriação interna de “excedentes sobrantes” (pois, a maior parte da riqueza produzida nas ex-colônias continuaria seguindo para as grandes potências) por parte das oligarquias nacionais, cujo caráter da disputa exigia a manutenção de instrumentos que predominaram no período clássico da acumulação primitiva, na etapa de transição do feudalismo ao capitalismo. De outro lado, o novo aparato político interno, nas ex-colônias, deveria reunir as condições para a exploração da força de trabalho, num regime muito mais violento que aquele expresso no capitalismo avançado, como condição para atrair investimentos externos, sob relações internacionais de subordinação, como nos ensina Ruy Mauro Marini, em “A dialética da dependência”.
É interessante notar as particularidades, do caso do Brasil, em sua adequação subalterna ao processo de industrialização imperialista em escala global. A economia brasileira foi se moldando lentamente às contradições mais gerais que surgiram com o fim do Antigo Sistema Colonial, na medida em que as relações sociais de produção vinculadas à agropecuária e à extração mineral se mantinham como fortes elementos a marcar a sociabilidade nacional. As pressões externas pela elevação da produtividade do trabalho, que resultaram inclusive na abolição do regime escravista, não foram suficientes para forjar, de imediato, relações de produção tipicamente capitalistas no território brasileiro. Muito ao contrário, as heranças do antigo pacto colonial, o qual envolvia o exclusivo metropolitano nas transações comerciais e usurárias, impediam que fossem gestadas organicamente tanto a acumulação interna de forma integrada, como a formação de um mercado de trabalho assalariado de modo generalizado. Como lembra José de Souza Martins, em “O Cativeiro da Terra”, imediatamente à abolição, o contingente que se mantinha até então escravizado foi forçado a compor um lumpesinato, marginal, enquanto o incentivo à imigração europeia criava novas relações de produção, porém, em regimes de trabalho vinculados à compensação dos gastos com a longa viagem, portanto, ainda longe da generalização do assalariamento.
Dessa forma, a subordinação aos interesses imperialistas tanto do baronato, no fim do período imperial, quanto do coronelismo, na República do Café, marcavam as precárias relações de poder interno. Tais relações envolviam, ainda, os comissários mercadores das casas exportadoras e importadoras, bem como os executivos de bancos estrangeiros instalados, naquela época, no Brasil da transição para a produção industrial voltada para o beneficiamento do café, têxteis, alguns alimentos e, depois, para a exportação de insumos demandados pelo período das Grandes Guerras (minério de ferro, siderurgia, química etc.).
A marca da inorganicidade estava presente naquele quadro de transição à indústria pesada no Brasil. A ausência de uma burguesia forte internamente, em termos de capacidade de centralização de capital, colocou o Estado brasileiro não apenas como responsável pela construção infraestrutural e pela organização dos mercados de trabalho, mas, especialmente, como principal suporte à formação das joint ventures associadas ao capital estrangeiro, cumprindo um papel essencial, desde o início da produção industrial restringida. Tratava-se da captura da economia brasileira aos arranjos da corrida imperialista, ou seja, sua inserção subordinada e especializada na consolidação do regime de integração hierarquizada própria da ordem da exportação de capitais pelas grandes potências: a especialização na exportação de produtos primários e semielaborados, bem como a absorção de tecnologia, máquinas e equipamentos já obsoletos e em processo de substituição nos grandes centros industriais em nível mundial.
As heranças deixadas por essa forma de integração gradual e dependente, portanto, se voltavam a garantir movimentos simultâneos de interesses externos e internos. A transferência de valor para as grandes potências imperialistas foram mantidas a partir da participação estrangeira direta nos investimentos fundamentais e na oferta de crédito, o que permitia, por si, o controle externo sobre o regime de produção, a transferência de tecnologia e as formas de financiamento. A remessa maior de riquezas passou a ocorrer com a especialização produtiva em insumos industriais mais baratos, voltados para a exportação, imprescindíveis para o abastecimento da produção e o consumo das famílias nos grandes centros da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, especialmente. A outra face do novo modelo de Estado subordinado se orientou no sentido de manter as condições mínimas de acumulação interna, como forma de garantir os interesses das oligarquias brasileiras, por meio, inclusive, da manutenção de formas arcaicas de relação de produção.
Por isso, uma das mais importantes manifestações da resistência de formas primitivas de acumulação internamente foi a permanência da estrutura fundiária. Foi necessário preservar o modelo concentrador de terras, como modo eficaz de impedir às camadas populares qualquer acesso aos meios de produzir diretamente as condições de sua própria vida. É nesse sentido, inclusive, que devem ser entendidos os vários momentos em que ocorreu a flexibilização da legislação brasileira, permitindo a venda de terras a estrangeiros, pois tais medidas estiveram vinculadas à incapacidade interna de manter produtivas e competitivas as grandes propriedades fundiárias, sempre sob o risco de sua ocupação por famílias sem-terra.
Assim, o Estado capitalista que emergiu das relações sociais de produção e do estágio de evolução das forças produtivas no Brasil teve que garantir jurídica, política e ideologicamente dois movimentos próprios da sua condição efetiva de dependência: a transferência líquida e contínua de riquezas na forma de valor, em direção às grandes potências imperialistas e, simultaneamente, um regime bastante híbrido de acumulação interna de capital, mesclando formas mercantis inovadoras com os mais primitivos procedimentos de expropriação das condições objetivas das classes trabalhadoras produzirem sua própria existência.
*Helder Gomes é economista e doutor em Política Social pela UFES.
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