Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Ícone da esquerda mundial, o filósofo e linguista Noam Chomsky lamentou, em entrevista ao site Democracy Now, em abril de 2017, os desvios cometidos pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil. Nas suas palavras da época: “É doloroso ver o Partido dos Trabalhadores, que levou adiante medidas importantes, não ter conseguido manter as mãos fora da caixa registradora. Eles se juntaram à elite extremamente corrupta, que está roubando o tempo todo, além de ter perdido a credibilidade”.
Em entrevista recente à Folha de São Paulo, de 02 de maio de 2018, Chomsky suaviza essa crítica e acredita ter sido injusta a prisão do ex-presidente Lula e de tratar-se de uma vingança das classes dominantes inconformadas com as reformas do governo petista que favoreceram a massa da população mais pobre do país. Além disso, o objetivo mais imediato dessa prisão, para ele, “seria impedir Lula de se candidatar em uma eleição que ele certamente venceria”. Pode ser, embora não haja nenhuma garantia disso.
Chomsky não nega sua entrevista anterior em que menciona o som “agradável” da caixa registradora, considerando que “infelizmente isso está cada vez mais claro”, mas, para condenar a prisão de Lula e sugerir que este merecia outro destino, apoia-se nas políticas econômicas de seu governo que beneficiaram muita gente. Ou seja, na sua visão Lula está sendo punido não pelo fato de não ter resistido ao encanto do som da caixa registradora, o que seria perdoável no seu entendimento, mas por ter incomodado as elites dominantes com suas políticas reformistas. Para ele, “é correto lutar contra a praga da corrupção [...], mas isso precisa ser feito com honestidade e integridade”.
Seu argumento não convence. Se Chomsky concorda que houve corrupção generalizada durante o governo do PT, seria o caso de fazer vistas grossas para os desvios cometidos pelo partido e por seus líderes apenas por terem implementado algumas políticas de conteúdo mais progressista? Isso significaria abrir mão de qualquer compromisso com a ética e a moral, princípios caros ao sistema democrático, desde que o governante, por meio de ações concretas, manifeste alguma preocupação com a população mais carente, o que não condiz com sua posição de filósofo. Também não convence sua opinião sobre a prioridade conferida a essas políticas que suscitaram o inconformismo das elites.
Isso porque, se é verdade que durante o seu governo, os programas sociais foram ampliados, favorecendo as camadas mais pobres da população, viabilizados pelo crescimento econômico e o aumento da arrecadação, que permitiram a destinação de maiores nacos do orçamento para a base da pirâmide social, também não é menos verdadeiro que foi, também neste período, que os ricos se tornaram ainda mais ricos com as políticas implementadas de favorecimento do capital e da riqueza financeira.
Estudos mais recentes sobre a questão da desigualdade no Brasil confirmam que enquanto a base e o topo da pirâmide social viram aumentar sua participação na renda nacional, a classe média, sempre ignorada nessas análises, viu a sua diminuir. Ou seja, as elites dominantes não perderam com a política de Lula e até saíram ganhando, tornando-se mais ricas; apenas os pobres tornaram-se menos pobres, mas a classe média foi quem pagou essa conta. Por que, e essa é uma questão que Chomsky não responde, as elites se insurgiriam contra quem também as beneficiou?
A questão é bem mais complexa e não encontra respostas na entrevista de Chomsky, embora este reconheça que “a esquerda deveria fazer uma autocrítica (o que ainda não foi feito), examinar o que deu errado e pensar em todas as oportunidades que foram perdidas porque sucumbiu à corrupção e planejamentos falhos”. A par a questão da corrupção por ele considerada uma coisa séria, sugere, na entrevista, que o principal erro dos governos de esquerda tem sido o de não saber aproveitar a oportunidade que tiveram para corrigir os problemas de suas economias, tornando-as viáveis, sustentáveis e consistentes as políticas redistributivas.
Ou seja, não deram importância à construção de bases mais sólidas para o crescimento econômico, necessário para tornar sustentáveis, no tempo, as políticas sociais implementadas, o que terminou determinando o seu insucesso. É precisamente nessa questão que, me parece, Chomsky consegue acertar o alvo na análise que faz sobre a política econômica da esquerda no Brasil em sua entrevista e que deve ser levada em conta em qualquer autocrítica que venha a ser feita sobre os erros cometidos na sua condução tanto no governo Lula como no de Dilma.
O fato é que ambos tentaram o impossível: implementar políticas redistributivas, mas sem envolver os ricos em seus custos e, também grave, sem promoverem mudanças estruturais na economia que poderiam, com o crescimento econômico, dar sustentação a este arranjo político de conciliação das classes sociais. Sem essa combinação que permite administrar os fluxos futuros de renda e o estoque acumulado da riqueza, por meio do crescimento e de uma reforma tributária progressiva, por exemplo, o que não foi feito e nem proposto, políticas redistributivas tendem rapidamente a se esgotar pelas tensões inevitáveis que provocam no funcionamento do sistema econômico.
Quando o crescimento arrefeceu, porque não fundado em bases sólidas, o pacto entre ricos e pobres se rompeu, por terem começado a faltar recursos para atender suas demandas, sem existirem alternativas para se escapar do desastre. Teria sido, assim, principalmente na gestão da economia, na qual não se soube construir uma política econômica redistributiva consistente, despreocupados com a questão do crescimento mais sustentável e com a inclusão da população mais rica em seus custos, a causa principal de seu fracasso. Diante dessa situação, prevaleceram as vozes mais fortes das elites dominantes para exigir mudanças no modelo econômico. Essa, a principal lição a ser extraída dessa experiência para a esquerda.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede e de O Beltrano, e autor, dentre outros, do livro “Economia e Política das Finanças Públicas no Brasil”