A greve dos caminhoneiros foi a mais pedagógica que aconteceu nesses últimos 50 anos no Brasil. Não precisou de líder, nem de partidos. Repetiu as manifestações públicas de 2013 por aqui, a primavera árabe, as insurgências em Madrid, em Hong Kong e na Wall Street. Deflagrada pela Federação dos Autônomos, foi conduzida nas ruas e estradas por grupos independentes. Havia representantes políticos por lá, sim. A cor das camisas e bonés não conseguiam disfarçar, mas todos pareciam deslocados. Chegou-se a pensar que a greve fazia parte de uma escalada de iniciativas e práticas destinadas a derrubar Temer, e não se teve explicações convincentes até agora sobre a origem dos apredrejadores - potenciais saqueadores - que terminaram por tirar a vida de duas pessoas.
Para uma população hoje bem mais alfabetizada e politizada a ação dos caminhoneiros trouxe muitas lições, conforme mostra o colunista Luiz Carlos Azedo (CB, 31.05). Uma delas é a de que “as estruturas verticais de Poder, em tempos líquidos, não conseguem traduzir e representar a sociedade no fluxo das crises”. O WhatsApp estava lá, veiculando inclusive uma sucessão de notícias falsas e provocações. Mas não era só ela. As redes todas documentaram e viralizaram os eventos e protestos, mantendo uma acalorada discussão pública e pressão sobre o Governo. A televisão dava institucionalidade aos relatos.
O que não se viu foi parlamentar. Desde 2013, quando foram expulsos das manifestações de rua, os congressistas evitam se meter. Preferem esconder-se, receosos de um desgaste político por apoiar a greve ou, ao contrário, o Governo. Covardes, os governadores, com suas alíquotas diferenciadas do ICMS, esconderam o aparato repressivo, numa atitude de desobediência à orientação do Governo Federal. As multas foram altas (R$ 9,4 milhões) e o PIB pode perder até R$ 100 bilhões, segundo a FGV. O Judiciário recolheu-se falando timidamente contra a greve, para defender a tal democracia burguesa, que contribui para seus membros entre o um por cento mais rico da população. Condenou os pedidos de retorno dos militares. Isolados, a presidente do STF e os presidentes da Câmara e do Senado fizeram papel secundário. Rodrigo Maia tentou dar uma rasteira em Temer aprovando a extinção do Pis e do Cofins. Falhou.
E Temer? Fica a dúvida se manteve mesmo a serenidade de um estadista, conduzindo soluções negociadas, e a autoridade de chefe das Forças Armadas. Convocou o aparelho repressivo, mas disse ter se recusado ao uso da repressão. Ficou, entretanto, refém de uma comissão, quase uma junta governativa, dentro do próprio palácio, representada pelo ministro da Defesa, o da Segurança, o Chefe da Gabinete Civil e do Militar e o ministro da Fazenda. O Ministério da Justiça ficou fora. Só apareceu no final, assim mesmo com um substituto. Nessa de negociar com os grevistas, rolou a cabeça do Presidente da Petrobrás, balançando a empresa saneada e o valor de suas ações nas Bolsas de Valores.
O instituto da greve é perverso, mas não é novo. Da cultura semibárbara lê-se que “Se os deuses não atenderem a essa prece, os homens pararão os cultos” (Boccanera, 1982). Na modernidade, as greves tiveram um forte influxo nas lutas de classes. Só na Itália, no final do século XIX, foram registradas 2.500 paralisações de trabalhadores. Na Inglaterra, em 1899, 1.200 greves. Nos Estados Unidos os caminhoneiros controlaram o País por diversas vezes. Chegaram a ser criminalizados. No Brasil, no governo João Goulart, foram assinaladas, em um ano, 350 greves, gerando um desabastecimento generalizado.
A greve dos caminhoneiros deste 2018 por aqui aponta, contudo, para dois aspectos estruturais e estruturantes. Um deles é o avanço da luta pelo reconhecimento da função social do sistema produtivo, que o liberalismo insiste em ignorar. Os patrões confundem greve pelos direitos do trabalho com locaute para a ganhar vantagens fiscais e financeiras pela primeira vez, a população começou a perceber, com clareza, os efeitos da falta de transportes: desabastecimento de alimentos e de medicamentos, suspensão de aulas nas escolas. Tomou conhecimento explícito de que é o cidadão quem paga a conta. Os próprios caminhoneiros tiveram uma visão mais pragmática do papel desempenhado por eles.
O outro aspecto emergente é a viralização do movimento grevista nas redes sociais. Não há como voltar na História. Estamos em plena era a informação e da cidadania ativa mobilizando-se quase espontaneamente à margem das instituições. A política convencional chegou ao mais baixo nível de credibilidade. Em compensação, sem uma proclamação formal, e até constitucional, vai ganhando forma digitalmente um parlamento virtual, que instrumentaliza a todos os cidadãos, individualmente, para propagar suas ideias e difundi-las a seu modo.
*Jornalista, professor, consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais.