Eduardo Selga*
O momento histórico presente não é uma aparição, um acaso do tempo, uma caixa de Pandora que se abriu, sabe-se lá como: é necessariamente consequência do ontem, se admitirmos a divisão do tempo nos blocos mais ou menos distintos aos quais batizamos passado, presente e futuro.
Parece óbvio, mas não é tanto assim. É preciso refletir sobre os fatos à luz de um pensamento que prime pelo rigor científico e não pelo raciocínio mágico ou religioso. Quando se abre mão da lógica que determina causa e consequência materiais para as coisas do mundo, este é “explicado” de modo infantil para sujeitos infantilizados. Nessas “explicações” não cabem meios-termos ou prudências: o mundo está nas extremidades.
O Brasil sempre foi um “país do futuro”, ou seja, uma nação em estado de esboço cuja arte final se concluiria nalgum ponto do tempo vindouro. Em ininterrupta constituição, como um grande edifício, impossível de ser finalizado em pouco tempo. Essa condição de “país do futuro”, porém, frequentemente serviu de pretexto a argumentos que menosprezam o povo brasileiro e a atitudes políticas que significam, na prática, adiar ao máximo a chegada desse porvir. Na verdade, o país era “do futuro” não apenas no sentido de pertencer a esse recorte temporal: também porque a tarefa era absolutamente gigantesca. E agora ficou ainda maior.
Por que semelhante postura sabotadora, de fazer-se desentendido quanto ao significado da expressão se, parodiando um slogan alienante muito em voga, mas que faz pleno sentido em uma sociedade simultaneamente reduzida a mercado consumidor e produto, “somos todos” brasileiros?Todos? Muitos nasceram aqui, mas se recusam à brasilidade.
Darcy Ribeiro dizia que somos uma “nova Roma”, no sentido de que a maior descendência dos povos latinos e da latinidade é o miscigenado povo brasileiro. Ainda que somemos as populações dos países atuais que descendem do império romano, o Brasil é numericamente maior. Ao superamos nossas mazelas, aqui “vai florescer [...] uma civilização diferente, que nunca ninguém viu”, e ao lado das grandes civilizações “existirá essa face morena”.
Embora sejam emoções opostas, ouvir esse depoimento de Darcy Ribeiro (https://www.youtube.com/watch?v=JMlYQzZf3DQ) talvez seja tão incisivo quanto assistir às labaredas destruindo a memória de nosso passado, no Museu Nacional e em outros aparelhos culturais que tiveram o mesmo triste destino nesse recentíssimo Brasil que estão tentando destruir a passo e passo, como quem arquiteta um prédio às avessas. São labaredas, ambas as experiências: uma, da esperança; outra, da destruição.
Há séculos está implantada em território brasileiro uma vertente ideológica que ataca a formação de nosso povo, no que ela tem de cabocla. Negros e indígenas são vistos como uma inconveniência que atrasa o progresso do país, sendo que aqueles não pediram para vir para cá e estes tiveram suas terras espoliadas. Ou seja, no Brasil só deveria haver branco. Em se tratado de “defeitos”, toda marca cultural advinda dessas etnias é tratada da mesma forma, como vitiligo na pele alva.
Esse Brasil mestiço de que falava Darcy Ribeiro começava a dar mostras de querer fincar pilares duradouros e erguer paredes sem o neoclássico cheirando a mofo ou o rococó pedante. Ao contrário, apresentavam uma estética brega, porém contagiante. Ora, isso é inadmissível para os que pensam e sentem a sociedade a partir de fetiches e arquétipos de além-mar, onde não cabe a maioria do povo brasileiro.
Os recentes governos do Brasil chamados progressistas ameaçaram construir autoestima numa parcela da população conhecida por não tê-la. Hum... Mau sinal, resmungaram os que sempre auferiram lucro com a situação, muitos dos quais membros de famílias cuja árvore genealógica está plantada em solo europeu. Resolveram eles não apenas impedir o avanço dos que deveriam estar sempre por baixo, como também extinguir a possibilidade de a ideia de Darcy Ribeiro concretizar-se em todo o seu esplendor. Aniquilar o pensamento de um Brasil possível e substituir por um não-Brasil. E aquele velho pensamento de país sem o “incômodo” das culturas periféricas volta à tona.
O conservadorismo quer, do ponto de vista dele, “passar o Brasil a limpo”, o que significa retificar o passado — como dizia Bacherlard — para forjar um presente e um futuro ao modo deles; fazer do Brasil um país triste; apagar memórias e culturas, desde o centro de macumba na favela até o Museu Nacional. Vandalismo e consumição.
*Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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