Por Helder Gomes*
Dizem, na Geometria, que três pontos não colineares determinam um plano. Elementos quantitativos e de qualidade que permitem avaliar o que não é plano, ou, o que pode torná-lo impreciso, ou falseado. Isso me veio à mente nas reflexões sobre a situação nacional e a necessidade de maior rigor na qualificação do que vem sendo definido como risco de expansão de uma nova escalada fascista no Brasil. Tratarei aqui do que vem me incomodando nesse debate, a partir da seguinte hipótese: as manifestações explícitas da violência dirigida e do irracionalismo como base de convencimento ideológico, que podem ser classificadas como próprias de um “fascismo à brasileira”, ressurgem novamente como farsa, apesar das tragédias que sempre provocam na vida de tanta gente.
Algumas premissas favorecem a ascensão do fanatismo político em boa parte do mundo dominado pelas relações do capital na atualidade. O aprofundamento da depressão econômica, que se alonga desde as últimas décadas do século XX, sem dúvida, tem construído um ambiente propício à difusão dos ideários fascistas. Isso fica cada vez mais patente na forma que assumem as manifestações de insatisfação de profissionais liberais, comerciantes e donos/as de oficinas e de fábricas de pequeno porte, bem como de parte significativa de estudantes e demais contingentes desencantados com o ideal fracassado da utopia neoliberal, difundida aos quatro ventos como a única solução possível. São vítimas efetivas das falências, da elevação da regressão tributária, da queda de poder aquisitivo, da redução da proteção social e da degradação das condições do trabalho qualificado, cujas apreensões são agravadas pelo avanço do desemprego, guardadas as singularidades em que esses fenômenos vêm ocorrendo em cada país.
Um elemento importante. Em vários desses países, em que muito do fascismo volta a se manifestar com força, as políticas neoliberais das últimas décadas foram implantadas, continuadas e/ou aprofundadas por frentes políticas reconhecidas socialmente como mais ou menos progressistas. Isso vem abrindo espaço para o crescimento da popularidade de forças políticas totalitárias, num contexto de ausência de projetos explicitamente consistentes e de descontentamento com lideranças já testadas à frente de postos governamentais, favorecendo a ascensão de personagens alucinadas pelo poder total, com apoio de militares e de milícias paramilitares de diversas modalidades.
Não se trata, portanto, da ascensão de valores ultraliberais em nível mundial. Trata-se, ao contrário, do crescimento da aversão às referências da democracia liberal, por mais uma vez os governos ditos democráticos não terem trazido a solução prometida, dando margem, assim, à elevação a um patamar assustador das perspectivas conservadoras, num momento em que se generaliza a utilização de técnicas digitais muito avançadas para a difusão de antigos projetos de controle de massas: ideologia irracionalista, nacionalismo discursivo e agressivo, xenofobia, racismo, defesa do modelo tradicional de família, propagação da violência cotidiana contra qualquer manifestação contrária a esses ideários, invenção de um inimigo que deve parecer comum, para citar alguns dos elementos em voga.
Voltando na história, percebemos que os regimes totalitários mais radicais, com nítida concepção fascista, ocorreram em países onde foram experimentadas fortes movimentos de organização revolucionária das classes trabalhadoras. O fortalecimento dessas organizações de contestação à ordem capitalista ocorreram em momentos de graves crises econômicas, cujo grau de aprofundamento resultaram na desestruturação do parque produtivo, no descontrole macroeconômico, com fortes repercussões na desestabilização política e institucional de várias nações. Em tais contextos foram rompidos os elos de adesão à sociabilidade proposta pelas perspectivas liberais democráticas.
Desde a aurora da Segunda Grande Guerra Mundial, sabemos que o surgimento desses projetos autoritários dependem do financiamento de grandes conglomerados econômicos. Ao mesmo tempo, dependem da militarização e da centralização do poder, da garantia de formas draconianas de acumulação capitalista a qualquer custo social, da dissolução de sindicatos laborais combativos e, portanto, da repressão violenta aos movimentos políticos anticapitalistas (anarquistas, socialistas etc.). Ao lado de tudo isso, sempre são propostas reformas educacionais, com ênfase no esvaziamento científico dos currículos, privilegiando disciplinas difusoras do civismo, das atividades esportivas e, inclusive, os exercícios militares, em algumas escolas. Todo esse esforço é organizado desde as instituições públicas, mas, especialmente, pela ativação intensiva dos aparatos privados de dominação ideológica, em busca de alguma legitimação gradativa do modelo totalitário em construção.
Porém, não podemos deixar de perceber que aquele era um momento especial, em que o ideário fascista foi instrumentalizado em meio a uma grande depressão econômica mundial, cujos transtornos mediavam duas grandes guerras mundiais. Naquele instante, as motivações desesperadas ante às manifestações mais nefastas do acirramento das contradições da ordem mercantil capitalista, em nível internacional, propiciaram a conversão de simples discursos patrióticos e militares em planos nacionais de reconstrução de grandes potências industriais, em franca disputa bélica imperialista.
Dito isso, ao nos debruçarmos sobre os fenômenos políticos, econômicos e culturais ocorridos recentemente no Brasil, percebemos o quanto eles foram se aproximando das perspectivas fascistas já experimentadas na história. Em especial, observamos como as agências privadas de promoção do conservadorismo como valor comportamental organizaram, ao longo das últimas décadas, uma nova investida sobre as instituições públicas, desde o parlamento, mas, especialmente, na gestão escolar e universitária, como também ampliaram muito seus tentáculos de difusão ideológica na vida privada, nas fábricas, no comércio e nos bancos, inclusive com forte penetração nas mais variadas organizações culturais e religiosas, alcançando grande parte de sua diversidade.
Entretanto, a forma como estão sendo gestadas essas iniciativas totalitárias em nosso país guardam muito de sua subalternidade tradicional em relação às grandes potências imperialistas. Mas, essa marca fundamental de todas as experiências ditatoriais experimentadas por aqui, desde O Estado Novo, pelo menos, sempre precisou ser escondida por trás de uma falsa imagem de soberania. De um lado, novamente recorrem-se a uma aura apelativa, cuja motivação é esconder a verdadeira face dos movimentos e instituições empresariais criadas recentemente, que vão desde o Fórum da Liberdade ao Movimento Brasil Livre, de recrutamento de personagens emblemáticos, para a difusão de seus propósitos de disciplinar as massas populares em momentos de crises violentas.
De outro lado, também precisam esconder que o recrudescimento do poder totalitário ocorre de forma desesperada e sem planos de futuro muito bem definidos. Os gestores executivos do modelo de extração e transferência líquida das riquezas nacionais para as grandes potências perderam sua capacidade de controlar seus principais instrumentos. Desde o Plano Real tem sido flagrante o intenso processo de desnacionalização patrimonial do parque produtivo brasileiro, ao mesmo tempo em que alcançou patamares insustentáveis a política de endividamento do Estado, das empresas e das famílias. Vão-se o patrimônio e os centros de decisão das empresas.
Assim, as propostas atuais, por trás do receituário conservador, apontam para a entrega do que resta do patrimônio e da soberania capenga sobre as decisões internas, o que afasta qualquer perspectiva das elites brasileiras apresentarem um plano de reconstrução nacional, tão enredadas que foram em sua própria mediocridade subalterna. Este é o quadro.
*Helder Gomes é economista e doutor em Política Social