Eduardo Selga*
Nas eleições que chegaram a termo no dia 28 de outubro, muito mais que o cargo presidencial foi posto em jogo: disputou-se, dentre outras coisas, a narrativa que se pretende vitoriosa junto à sociedade quanto à seguinte questão: somos um povo fraterno e tolerante, de acordo com o que sustenta o estereótipo e demonstra boa parte da população? Ou muito antes pelo contrário, chega de sustentar essa máscara do bom-mocismo porque, na verdade, o Brasil não é de todos, e sim o Brasil todo é para poucos? Desnecessário lembrar que os partidários mais empedernidos da opção antidemocrática da narrativa em disputa, eles que fizeram muita força para eleger o presidente, nem sempre admitem às claras esse discurso, mas praticam as várias atitudes que esse raciocínio excludente convoca.
A eterna inexistência de uma política educacional que desde as primeiras séries produza no indivíduo o sentimento de pertença em relação à sociedade, é responsável, em grande medida, por uma sensação de vácuo, de não sabermos quem efetivamente somos, enquanto povo brasileiro e sul-americano.
Nessa carência de identidade, vamos sendo moldados e conformados segundo interesses de outras nações, em prejuízo de nosso país e, portanto, de nós mesmos. É facílimo nos alienarem se desde sempre Brasil é uma vaguidão, ao invés de um sentimento concreto na alma do brasileiro. E não falo de patriotada, que é uma caricatura desse sentimento, e sim de o sul-rio-grandense enxergar o marajoara como um cidadão tão brasileiro quanto ele, por exemplo. É a falta desse sentimento que faz com que boa parte do Sudeste e do Sul execre preconceituosamente os nordestinos, como se não fossem brasileiros.
Nessa briga de narrativas, a versão mais raivosa do Brasil não surgiu do nada, muito menos é um filhote criado exclusivamente para derrubar a presidente Dilma e que, a contragosto de seus artífices, ganhou vida própria: essa versão é orgulhosa herdeira do pensamento e das atitudes desumanizantes do colonizador português. Já havia se manifestado no golpe de 1964, mas a ditadura não foi sua avant-première: em vários momentos históricos brasileiros se fez presente, em diversas proporções. Por força da redemocratização, a sanha hidrófoba não teve outra saída senão recolher-se, aguardando a chance de retomar espaços.
Como eternidades não existem cá entre nós do mundo humano, esse pensamento excludente encontrou terreno para, aos poucos, voltar à luz do sol, firmar-se, pôr as unhas de fora, mostrar a carranca e os dentes, arrancar pedaços e, em janeiro de 2019, subir a rampa do Alvorada.
Os fatores que possibilitaram esse retrocesso são muitos e variados, mas gostaria de abordar o aspecto da fé religiosa.
Por sermos diversos acerca dessa questão, (com as religiões de matriz africana suportando a chacota e o ataque explícito), os evangélicos, após suas muitas variantes superarem os preconceitos históricos, passaram da timidez dos primeiros tempos, em que eram chamados de “os bíblias”, à presença ampla na sociedade. Com alguns valores contrários ao ainda dominante catolicismo, aos poucos os evangélicos passaram a integrar a sociedade a ponto de se mostrarem eficientes formadores de opinião junto a uma camada social bem demarcada. E, importante lembrar, nunca houve tentativa relevante de proibição de seus cultos ou ataques de terrorismo religioso em seus templos e enquanto esse processo se deu.
A partir do momento em que puseram Deus como entidade que abençoa o capitalismo em todos os seus níveis de predação, por meio da Teologia da Prosperidade, o processo ideológico escancarou-se. Ele que sempre foi muito presente na religião, porquanto ela medeia a relação do sujeito com o Estado em favor deste e com a ilusão de benefício daquele. Ganhou muita força um fundamentalismo que, aparentemente tão-só religioso, alimenta o radicalismo ultraneoliberal e seus juízos também radicais.
A aliança do neopentecostalismo com o ultraneoliberalismo está causando, no Brasil, um estrago difícil de avaliar por hora, mesmo porque, acredito, outros capítulos dessa novela bizarra prometem vir pela frente.
Acredito que esteja em curso algo para o qual ainda há freios: uma revolução cultural que pretende o retrocesso civilizatório, a naturalização do fundamentalismo religioso e a intolerância como regra. Nesse sentido, o presidente recém-eleito pode ser o pontapé inicial ou a sepultura desse projeto. Se o caminho será este ou aquele, dependerá muito do nível de politização, organização e militância da parcela da sociedade que se oporá aos inevitáveis desatinos de um chefe de Estado e de governo inacreditavelmente medíocre.
Se for o pontapé inicial, o jogo só terá começado, e a narrativa excludente do Brasil para poucos terá grande chance de remodelar culturalmente o brasileiro para pior. Muito pior.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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