Por Fabrício Augusto de Oliveira
Depois de eleito, Bolsonaro abrandou o discurso antidemocrático e, aos poucos, tem passado a cortejar as instituições da República, mas claramente sem abrir mão de seu viés autoritário contra algumas minorias, alguns órgãos da imprensa nacional e da defesa de uma segurança mais truculenta, que agrada à população. Não é muito, mas para quem vinha prometendo fuzilar e expulsar do país a oposição não deixa de ser um avanço positivo, mais civilizado.
Sua trupe, no entanto, continua em tom beligerante, defendendo a aprovação de medidas para minar os alicerces da democracia e os direitos das minorias numa clara demonstração de que suas posições um pouco mais moderadas ainda não foram ouvidas. Em recente entrevista na Folha de São Paulo, seu filho e deputado federal por São Paulo, Eduardo Bolsonaro, propõe criminalizar o comunismo, classificar como terrorismo as invasões de terras pelo MST, lutar para aprovar o projeto Escola sem Partido e expurgar o pensamento mais progressista do Ministério das Relações Exteriores, entre outros arroubos autoritários.
Se no campo político persistem dúvidas sobre o que pode vir a representar o governo Bolsonaro para a democracia, o mesmo pode ser dito, pelo menos até o momento, para a economia. Isso porque, apesar de todo o alvoroço que foi criado com a indicação do ortodoxo economista Paulo Guedes, da Escola de Chicago, para o comando da economia, e do otimismo que tomou conta do mercado financeiro no período pós-eleitoral, não é possível, nem mesmo com o uso de uma potente lupa, ter ideia do projeto que pretende para o país e da política econômica que será implementada.
Sabe-se apenas, por enquanto, que a redução do atual desequilíbrio fiscal e do nível de endividamento do Estado figura como meta prioritária de sua administração, o que é perfeitamente compreensível, dada a situação de calamidade das contas públicas e o fato de que, na visão da ortodoxia, seu equacionamento representa uma precondição para viabilizar qualquer projeto de desenvolvimento. Não está claro, contudo, como este objetivo poderá ser atingido diante dos não poucos desencontros entre a área econômica e o futuro presidente sobre as medidas que serão adotadas para essa finalidade.
Para Guedes, bem de acordo com sua formação acadêmica, os caminhos do ajuste fiscal passam por uma reforma previdenciária radical, que reduza limites, direitos e privilégios indistintamente para os servidores públicos e os trabalhadores do setor privado, pelo desmonte do sistema de incentivos e de renúncias fiscais do Estado, por um amplo e agressivo programa de privatização das empresas estatais, pela recriação da CPMF e por uma revisão da Constituição que permita a desvinculação de receitas para o financiamento das áreas sociais.
Não são propostas que têm, em sua totalidade, recebido o apoio do presidente eleito. Bolsonaro tem se manifestado contra a proposta mais radical de Guedes no campo previdenciário, lembrando existirem pessoas menos favorecidas que com ela serão atingidas, contra a recriação da CPMF, e colocado dúvidas a respeito da extensão do programa de privatização, até mesmo por suas posições nacionalistas, afora o fato de que a redução do sistema de incentivos e de renúncias fiscais deve atingir, em cheio, vários setores que garantiram sua vitória eleitoral. Será necessário esperar pelo início de seu governo para saber como estes ponteiros serão ajustados e quais dessas posições prevalecerão para o enfrentamento dessa questão.
Não há dúvidas de que a questão fiscal se tornou, se não o principal, um dos principais problemas do país. Em 2014, a dívida líquida do setor público fechou o ano no nível correspondente a 33,1% do PIB, enquanto a dívida bruta do governo geral atingia 57,2%. Quando anos depois, com a implementação de políticas ortodoxas, sob os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer, voltadas para melhorar este quadro, a situação só piorou: em setembro de 2018, a dívida líquida já atingia 52,2% do PIB e a dívida bruta 77,2%, 20 pontos percentuais acima do nível de 2014. Como se projeta a continuidade de déficits primários para os próximos anos caso perdurem as condições atuais, não haverá como impedir que a dívida bruta, em pouco tempo, caminhe para 100% do PIB, inviabilizando a gestão econômica no país. A grande questão reside em definir como resolver este problema sem provocar maiores estragos para a economia e a sociedade.
O caminho que aparentemente vem sendo apontado pela equipe econômica de Bolsonaro, com aumento de impostos, cortes de gastos sociais e privatizações, é o mesmo que vem sendo trilhado desde 2015 por Joaquim Levy e Henrique Meirelles, ministros de Dilma e Temer e que só levou à piora do quadro macroeconômico e ao aumento do desequilíbrio fiscal. Primeiro, com a profunda recessão que se instalou no país e que provocou aumento considerável do desemprego e queda brutal das receitas públicas. Depois, com o baixo crescimento de 2017 e 2018, que preservou os altos níveis de desemprego e asfixiadas as receitas públicas, ampliando o rombo fiscal. Há caminhos mais promissores que podem ser trilhados se a teimosia da ortodoxia de “matar o crescimento e o emprego” para viabilizar o ajuste – suicida, por sinal – for deixada de lado e Bolsonaro não se deixar levar pelo conto da carochinha dos defensores do mercado especialmente na questão fiscal.
Não há discordância sobre a necessidade de uma reforma da previdência. Mas seus problemas não podem ser resumidos ao problema da idade da aposentadoria, tecla insistentemente batida por seus analistas e pela mídia. Um mapeamento das aberrações existentes nos regimes próprios dos servidores públicos, como a subcobrança ou isenção das contribuições para algumas categorias privilegiadas e até mesmo o pagamento de benefícios para seus filhos, bem como as gordas aposentadoras pagas às mesmas deveriam merecer atenção especial nessa reforma. Da mesma maneira, seria necessário avaliar melhor, dentro do regime da previdência privada, os desequilíbrios provocados pela previdência rural, carente de contribuições, mas farta de benefícios vis-à-vis a previdência urbana, em geral superavitária, fazendo a distinção entre previdência e assistência, antes de jogar toda a conta para o trabalhador.
No campo da tributação, é amplo o espaço para aumentar a tributação sobre a renda e o patrimônio como demonstrado no recente estudo realizado pela ANFIP e FENAFISCO sobre uma reforma tributária solidária, o que propiciaria reduzir o peso da tributação indireta na estrutura de receitas do Estado, embora tal mudança não mereça a devida atenção dos economistas pró-mercado. Tal medida, além de injetar oxigênio na demanda agregada e reduzir o custo-Brasil, dando forças para os investimentos e o crescimento econômico, ainda contribuiria, de um lado, para tornar o sistema tributário brasileiro mais justo do ponto de vista social e, de outro, para carrear recursos para viabilizar o ajuste fiscal pretendido.
O mesmo se pode dizer sobre a questão dos incentivos e das renúncias fiscais do Estado, cujo montante ultrapassa, na atualidade, a casa dos R$ 300 bilhões, um nível apreciável comparado ao déficit primário de R$ 139 bilhões projetado para 2019. De uma maneira geral, embora alguns destes incentivos tenham importância do ponto de vista econômico e social, parte significativa dos mesmos não passam de agrados governamentais para determinados setores que, uma vez concedidos e aprovados, se transformaram, por inércia, em direitos adquiridos. Uma ampla revisão dos efeitos e resultados com eles alcançados, extinguindo os que não mais se justificam e não trazem retorno para a sociedade, representaria uma boa medida para dar mais força ao ajuste pretendido, embora não sejam pequenas as resistências que deverão surgir à sua retirada.
Embora tais medidas sejam importantes para resolver o atual desequilíbrio primário das contas públicas, sem ter de se realizar cortes indiscriminados nos gastos sociais que prejudicam a sociedade, um ajuste fiscal mais completo e confiável não pode desconsiderar o peso que hoje representa o custo financeiro da dívida pública no orçamento, o qual não entra na equação da ortodoxia. Até setembro de 2018, os juros nominais, no acumulado de 12 meses, atingiram R$ 401 bilhões, correspondentes a 5,9% do PIB ou a 82% de todo o déficit nominal de 7,2% do PIB do setor público. Um desafio do novo governo se pretende resolver, de fato, o imbróglio fiscal, será apenas não o de fazer avançar essas propostas, mas também de desmontar o cassino em que o país se transformou, mesmo contrariando os interesses do capital financeiro. Sem isso, de nada adiantarão as reformas moralizantes e cosméticas anunciadas pelo futuro governo de redução dos ministérios e dos cargos comissionados.
Mesmo que a principal preocupação do futuro governo e de sua equipe econômica esteja voltada para solucionar a questão fiscal antes da apresentação de um projeto de desenvolvimento, seu sucesso nessa empreitada vai depender das escolhas feitas para atingir este objetivo. Se trilhar o caminho das mudanças que vêm sendo ventiladas pela equipe econômica suas chances de insucesso não são pequenas e mesmo a modesta projeção de crescimento do PIB de 2,5% que vem sendo feita para 2019, na hipótese de que as reformas sejam realizadas, dificilmente será alcançada. Se começar a entender que por trás da economia existe uma sociedade composta por indivíduos em condições desiguais, como Bolsonaro passou a se manifestar sobre a reforma previdenciária, e que o compromisso da política econômica deve ser o de criar condições para o bem de todos e não de grupos específicos, então o Brasil terá alguma possibilidade de sair do buraco em que foi jogado. Difícil de acreditar, mas na vida tudo é possível.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede e O Beltrano, e autor, dentro outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.
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