Por Ester Abreu Vieira de Oliveira
A História é cronológica, mas não é crítica. Ela nasceu das antigas crônicas que constituem uma época cíclica, em que se encontram fundidos cantares de gestas num processo de copiação, depois de eliminados os exageros e acrescidos pequenos dados documentais.
O cronista informa as suas notícias, mas a autoridade das crônicas se baseia em uma depuração intuitiva: uma pequena adaptação documental enriquecida com elementos folclóricos (o poético) com a finalidade de justificar a historicidade. Daí poder situar as crônicas num lugar intermediário entre a poesia e a história, isto é, entre a História, considerada como sagrada, como verdade, e o fictício. Na Espanha, a crônica teve uma grande aceitação, parece ser em virtude da credibilidade que se dá mais à prosa que à poesia. Porém depois da Crônica Geral de Alfonso, el Sábio, houve um declínio desse gênero o qual ressurgirá com as Crônicas das Índias, no século XV.
Já foi sentido por estudiosos, um exemplo é Barthes, que o romance e a História sempre tiveram estreitas relações, pois dispõem de tempo e de espaço, de pessoas e de objetos. Muitas vezes História e Ficção se unem para organizarem uma narrativa de tão viva realidade que não sabemos onde uma começa e onde a outra termina. Isso ocorre quando, ao fazer-se a narrativa, se recupera um passado com recursos variados: a partir de um documento ou de uma recordação.
Existe a tese de que a História é uma estrutura verbal, um discurso narrativo, uma ficção, construída de acordo com um paradigma metahistórico de natureza poética. Mas a separação entre História e ficção fica clara se o princípio de que se parte está no fato de o ficcional confundir-se com o falso, o mentiroso, e o histórico, a verdade. É esta acepção que faz com que os romancistas se preocupem com a veracidade do próprio texto onde se entrecruzam outros e coexistem discursos em tensão, num diálogo com todos os textos culturais.
Os romances históricos, de cunho medieval, período místico, apaixonado, surgiram, principalmente, por imitação de Walter Scott, no século XIX. Em geral, são baseados em episódios cavaleirescos, lendários ou fantásticos, com torneios, aventuras, raptos. As narrativas falseavam não só nas figuras, mas também no ambiente histórico em que se moviam.
O romance contemporâneo a Crônica de Malemort (1978), de Reinaldo dos Santos Neves, que descreve as batalhas, os amores e as desventuras do senhor do castelo de Malemort, tem um cunho histórico-medieval. Há frequentes recursos de aproveitamento de figuras bíblicas e transcrições de alguns versículos bíblicos.
O autor recria a Idade Média descrevendo cerimônias religiosas, batalhas torneios, julgamento de corte, intrigas, enterros, festas, paixões, incestos, calamidades públicas, entre outras ações medievais. Ele coloca toda uma luta entre a civilização e a selvageria e faz do tempo um jogo de verossimilhança.
À semelhança da extinção da família de Buendía – Iguarán (José Arcádio e Úrsula), de Cem anos de solidão, de García Márquez, a Crônica de Malemort mostra o apogeu e a destruição de uma estirpe, a de Rogier Besedeable, ou Giac de Malemort, vassalo do feudo de Nelle, cujo patriarca era Enguenand de Nelle.
Pode-se dividir a narrativa em cinco partes:- A primeira, a que se perdeu, se refere à saída de Rogiers Besedeable ou de Giac de Malemort para lutar com os ingleses e seu retorno ao castelo de Malemort.
– A segunda trata da saída de Rogiers, acompanhado de seu filho Rogiers Amideu, para o castelo feudal do senhor de Neille, onde foi sentenciado à morte e perdoado pelo sangue derramado do seu filho, ao extirparem-lhe o órgão reprodutor. Nessa parte da narrativa, já se prenuncia a perda da herdade de Malemort pela família de Giac. A integração do social lembra o ato que uniu a criatura a Deus, manifestação de amor do filho de Deus, Cristo, quando derramou o seu sangue na cruz.
– A terceira parte, num cenário da peste negra, põe em destaque a vida amorosa dos filhos do castelão, evidenciando, principalmente, os amores de Thibert de Giac e sua irmã Katherine, que recriam com a sua paixão a transgressão dos filhos de David, Amon e Thamar.
– A quarta parte mostra o retorno de paz entre os de Giac e o senhor de Nelle, diminuição de poder da família de Giac graças ao casamento de Katherine com um bastardo dos de Nelle. Morte do senhor de Nelle.
– A quinta parte aborda a acusação de adultério de Katerine, o desafio do irmão e uma batalha mortal que leva à destruição de toda a linhagem dos de Giac, inclusive do filho bastado.
Após a morte do senhor de Nelle, houve transgressão de um tabu. Roger traiu o cadáver do seu senhor na pessoa de sua amada. O herdeiro imediato, Aimer de Nelle, em um ato de ciúme, inveja e ira, pois também desejava essa mulher, castiga-a cruelmente. Rogier a defende. Há uma forte batalha, na qual morreu o herdeiro. Seu irmão Jehans de Nelle o sucederá. Há um luxo de detalhes, de linha expressionista, quando o narrador descreve as ações durante a batalha.
A linhagem dos Besedeable é marcada por pecado e morte, composta de pecadores, santos e guerreiros. Os membros dessa família, num espaço em círculo, como nos romances de viagens, se movem junto a vencedores e vencidos, amados ou traídos, condenados ou perdoados. A mulher, tanto as da família quanto as que estejam em contacto com ela é mostrada como objeto sexual, e sua sexualidade possibilita a passagem da divinização para o destronamento da mulher.
Nessa obra, concretizam-se quatro pecados capitais: a inveja, a luxúria, a ira e a soberba. Dessa forma tornam-se possíveis os semas: vingança, falsidade, incesto, homossexualidade, adultério, violações, casamento arranjado, gravidez indesejada, assassinatos, mutilação do órgão reprodutor, bastardia, linhagem, sucessão, deserdamento, legitimidade, medo, honra, luta, sangue, armas, perdão, arrependimento, enterros, religiosidade, funerais, fratricídio, entre outros motivos relacionados com esses pecados.
Em Malemort, os símbolos, como em um auto sacramental, se concretizam para assinalar as doutrinas teológicas, mostrando a fugacidade do tempo e a caducidade das honrarias, preocupações que aparecem, também, nos textos medievais do século XIV, como nas Coplas que Jorge Manrique, escritor espanhol, compôs, pela morte de seu pai. Nessa elegia, o poeta medieval começa falando da morte, da condição da finitude, com a idéia medieval de que esta vida é um caminho para a outra e de que ninguém está isento desse acontecimento. Depois, como nas Danças da Morte, do teatro medieval, apresenta a nulidade das honrarias terrenas, o perecível das coisas. Citamos, em Malemort, a ocasião em que depois da morte do senhor de Nelle, o narrador/cronista se dirige ao leitor/ receptor filosofando e indagando: “[...] Eu vos pergunto senhores: quando começa nossa vida secar [sic] para cair na morte, de que nos valem todas as coisas que tivemos no mundo perecentes, nem todas as riquezas nem todas as honras nem as grandes altezas e estados? (NEVES, 1978, p. 13)
O cenário se adéqua ao estado de ânimo do cronista. A paisagem outonal da floresta próxima ao castelo dos de Nelle, que será mais tarde palco de trágicos acontecimentos, serve para exemplificar a inutilidade dos bens terrenos. E, como um monge medieval, o narrador, transmite a filosofia da época numa comparação “[...] Onde direi-vos que nossa vida neste mundo não vale mais que uma dessas folhas que entrando outono, vai perdendo a verdura e a formosura e seca-se e é derrubada e perece e muda-se em pó [...]” ( NEVES, 1978, p. 13).
O narrador cronista, um moralista, diz estar contando um conto, história ou crônica, para mostrar o poder de Deus e o castigo que sobrevém ao pecador e que ele quer se livrar: “[...] E se me perguntardes [de o porquê] morreu Thibert de Giac, eu vos direi que morreu pelo pecado de seu pai e pelo seu e de sua irmã que nenhuma coisa não adveio a essa linhagem, senão por culpa de seus próprios pecados [...] Jesus Cristo, nosso salvador, benze e ajuda a mim pecador [...]” ( NEVES, 1978. p. 162).
A história de um feudo com senhor, vassalos, barões, povo, clero, de uma época muito afastada, supostamente irrepetível, se torna uma metáfora moral da atualidade. Há nela alguma coisa da criminalidade humana que pode estar presente nos nossos jornais, nas sessões de escândalos.
Um narrador/cronista tece um emaranhado de inter-relacionamento de discursos para realizar a escritura da história dionisíaca. Mas é assumido, implicitamente, por outro narrador que se preocupa com a fidelidade do texto e indica, em notas, as fontes dos discursos ou acrescenta dados explicativos ao texto. Este recurso, isto é, das notas esclarecedoras, nos leva a declarar que há dois narradores. Um, o narrador /cronista, Thomas Maschin, cujo nome não aparece no desenrolar da trama, mas numa folha à parte, depois do final da crônica, numa lista dos personagens, organizada por ordem de chegada, na qual se menciona a marca de família e posição social dos personagens. Ele se mostra nos verbos iniciadores dos discursos diretos, nas expressões temporais, no pronome em primeira pessoa, nos comentários subjetivos que acompanham o discurso da crônica. O outro narrador, esclarecedor ou informador, é imparcial. Manifesta-se na lista já referida e nas notas que acompanham a narrativa da crônica da família dos de Giac. Põe-se em expectativa, acompanhando o relato. Ele determina, para maior verossimilhança da crônica, portanto para enganar ao receptor, eliminar as 80 páginas iniciais, segundo ele “[...] para que [o relato] tivesse início logo num dos pontos nevrálgicos da história” um toque de autenticidade ao que seria um manuscrito medieval”. Está claro que o seu objetivo é enganar, fazendo ficção na ficção. A arte de mentir já é mostrada por Aristóteles em sua Poética. Há relações intertextuais com palavras e códigos culturais exteriores ao texto. Os discursos dos narradores e dos personagens estão esmaltados de citações, acompanhadas de notas, onde se confessa a fonte. Com essa técnica reafirma-se a teoria de que o texto é feito dos livros lidos.
O narrador/cronista deveria ser imparcial, mas não é. Frequentemente aparecem tiradas líricas, juízos de valor, manifestações de consideração, pesar, dor, horror, ainda que tome a palavra para narrar um acontecimento histórico em época de um tempo preciso, ano de 1247, 1352, 1355, com indicação do dia da semana, dia do mês e ano com suas estações. Ele quer mostrar a veracidade do fato que narra, por isso se detém em certos relatos, mesmo os folclóricos, como a morte de Rogiers Amidieu, no pátio do convento, com o vôo de duas pombas saindo de perto dele, indo em direção ao céu, pois não quer que nada fique imperdível para a história. Com esse recurso deixa de ser um Historiador e passa a ser um Ficcionista. Tudo isso para mostrar a destruição de uma dinastia, composta de guerreiros, santos e pecadores, sendo o pecado a causa de sua destruição, como um tipo de vida a evitar.
Há fragmentos literalmente medievais, colocados como signos de inter-historicidade. Um exemplo são as palavras ditas pelo povo na ocasião da morte do bastado de Nelle: “Ai, boo homem, boo cavaleiro [...] como este houvesse tam maa-andança” (NEVES, 1978, p. 87. Podem aparecer, ainda, textos de sintaxe medieval, mas adaptados na grafia, ou somente fragmentos de frases, com a finalidade de assinalar a autenticidade do texto.
A narrativa homodiegética, narrador testemunha dos acontecimentos, se faz precisa no tempo, espaço e ação. O narrador relata, incorporando-se à narrativa como mais um personagem, para comover o destinatário ou despertar-lhe a sua atenção pelos fatos ocorridos. A falta de impessoalidade do narrador diferencia essa crônica contemporânea da medieval quando o cronista se propunha tão-somente narrar um fato sem expressar a sua opinião. Assim o cronista de Malemort, colocando a sua carga emotiva, faz da sua historia um conto, uma ficção, afastando-se da primitiva crônica, logo da História. Simulando estar usando a técnica do distanciamento, se compraz em contar uma história com uma sintaxe fingida (adaptada ou traduzida) entremeada de discurso direto. Seu relato dá oportunidade a que outro narrador / acompanhante e leitor da crônica inclua citações, o que dá à obra certa base histórica à realidade narrada, abrangendo não só o que foi, mas também o que poderia ter sido, recursos próprios do relato histórico.
Para obter verossimilhança do relato histórico e para captar a contextura e a qualidade do viver pretérito, o cronista de Malemort recorreu a variedades de opções, condicionamentos sociais e materiais (peste, guerras e notas explicativas). Assim a história da perspectiva do presente (a do escritor) e do passado (o do fato narrado) descobre uma terceira dimensão, o que poderia ter acontecido. A capacidade de contar as coisas não como elas sucederam, mas como elas deveriam ter ocorrido, a habilidade de hipótese, a maneira de referir-se às coisas, teorizada por Aristóteles na Arte poética, diferenciam o historiador do poeta, porque este conta as coisas como poderiam ter acontecidas e aquele conta tais como sucederam.
Em fim, a qualidade desse romance mostra o quilate do ficcionista e a extensão de suas leituras e o coloca em pé de igualdade junto aos bons escritores do gênero de ficção histórica que se voltaram para a Idade Média, pois uma boa obra é resultado de muitas vozes antecessoras por traz da voz isolada.
1. NEVES, Reinaldo Santo. A crônica de Malemort, Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.
Este é um fragmento do ensaio “A Crônica de Malemort: o medievo na literatura capixaba”, publicado em
2. OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira, Telma Martins Boudou, Virginia Coeli Passos de Albuquerque (Org.) Signos em Interação, Literatura. Cinema. História. Crítica. Psicanálise. Vitória: Ufes/ DLL, 1996, p. 62-66 .
3. Ester Abreu Vieira de Oliveira é escritora, Professora Emérita da UFES, Doutora em Letras Neolatinas: Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas- UFRJ, Pós Doutora em Filologia Espanhola: Teatro Contemporâneo UNED –Madri, pertence a instituições culturais: IHGES, AEL, AFESL AITENSO, ABH, AIH, e a Conselhos Editoriais.
4. Reinaldo Santos Neves (1946) é um escritor capixaba, contista, ensaísta, poeta e ficcionista. Como romancista escreveu, além da obra aqui apresentada, os romances: Reino dos medas (1971); As mãos no fogo ( 1984); Sueli: romance confesso (1989); Kitty aos 22 ( 2006); A longa história (2007); A ceia dominicana: romance neolatino ( 2008); A folha de hera: romance bilíngüe (1 vol 2011); A folha de hera: romance bilíngüe ( 2 vo, 2012); A folha de hera: romance bilíngüe, 3 vol 2014).
5. Cabe lembrar que hoje se questiona a parte de subjetividade que existe na própria História.