Casos e casos Dona Ana sabia contar: de aparições, Saci Pererê juntando e espalhando os animais, enterros com acompanhantes que desapareciam na curva da rua, mão que abria portas, laranjas que apareciam atiradas de não se sabe de onde....
Durante as horas dessas contações de histórias eram ofertados às crianças, sentadas nas cadeiras pretas de palhinha, paralelamente enfileiradas, os saborosos biscoitos de polvilhos fritos que só Dona Ana sabia confeccionar, enquanto não passava o trem.
Mas entre todos os casos verídicos, segundo ela, que seus olhos (que a terra iria comer) viram, o mais inquietante para as crianças era o da Mula sem Cabeça, segundo afirmativa categórica de Dona Ana, era a mulher, que Deus me livre e guarde, havia sido do padre. Na quaresma esse animal sofrido passava pela rua toc...toc..., ela o ouvia passar. Mas as crianças não viam, nem ouviam nada, mas ela sim, afirmava terminantemente. Mas como andava esse animal? Como seria andar sem cabeça? Que coisa horrível! Não via? Esse era o meu tormento. Não me preocupava com a boca com o que dizia, clamava ou comia. E esse animal sofrido e misterioso era o medo e as inquietações das crianças, que saíam desse recinto mágico e tenebroso com a cabeça baixa e uma pertinho da outra, encolhidinhas pelo temor ao invisível.
Mas na vida cotidiana de Dona Ana o destaque eram as passagens dos trens de carga ou passageiro que transitavam, em horas precisas, sobre os paralelos trilhos várias vezes por dia diante de seu sobrado. Iam e vinham chaque... chaque... chaque... até diminuíam a marcha e às vezes tocavam o sino... ao passar em frente de sua casa. A superfície vibrava e, ainda mais, o coração de Dona Ana que sonhava. Não conhecia outra cidade e, talvez, sequer as outras ruas onde morava desde que se casou, quando, ainda, não tinha quinze anos... Mas era uma alegria vibrante, erótica a impulsionar o seu ser durante a passagem dos trens. Nessa ocasião, seus alongados cabelos oxigenados eram movidos por um gracioso gesto para o outro lado, numa coquete atitude. Em sua boca surgia um sorriso. Um ligeiro movimento da mão adeuzava a poderosa máquina ou o robusto maquinista que a movimentava...
Nessas horas das passagens dos trens, sentava-se à porta da sala da sua casa e sonhava com a força viril da máquina do maquinista ou com os lugares que possivelmente haviam passado? Não se sabe. Mas com certeza via-se jovem, bonita e desejada.