Por Aylê-Salassié Filgueiras Quintão
Estamos diante de um apagão: pessoas brincando levianamente nas redes sociais com a possibilidade de o Brasil entrar numa guerra: “O Brasil já invadiu a Venezuela”. “Santa Helena do Uairen foi devastada”. “Blindados avançam sobre a população civil”. Parecem internos de algum hospício, aparentemente, em pleno gozo sanidade mental. É a soma da irresponsabilidade com a insensatez de uma psicopatia latente que a democracia não consegue administrar.
Uma guerra entre o Brasil e a Venezuela é algo que não aconteceu, não acontece e , provavelmente, jamais acontecerá. Nenhum dos dois países, vizinhos (e amigos), seria louco de abrir uma frente de lutas dessa, que tenderia a contaminar a América Latina e a até fragmentar territórios. Em que pese a diferença ideológica eventual, os militares brasileiros mantém relações próximas com os militares bolivarianos. O nosso vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, foi adido do Brasil em Caracas. Em território da fronteira, entre Brasil e a Venezuela, transitam livremente os índios ianomamis e uma dezena de outras nações indígenas. Verdade seja dita: não se reconhecem cidadãos de nenhum dos dois países.
A guerra sempre vitimizou a população civil. Na última, na Europa, morreram 100 milhões de pessoas. Na Colômbia, a luta das FARC resultou na morte de 250 mil civis. Aprendi com o nosso ministro (o primeiro) da Reforma Agrária, Nelson Ribeiro, que, para qualquer conflito, não existe outro encaminhamento senão o do diálogo. E, por princípio das partes, “ele não deve se esgotar nunca”. O general Mourão parece pensar assim. Temos de nos precaver na hora de votar. Quase sempre se elege indivíduos destemperados.
Solano Lopez, do Paraguai, alimentava desde criança o sonho pessoal de chegar ao mar, no Atlântico, através do Brasil. Não era nacionalismo ou patriotismo, mas alucinada imaginação, que quase extinguiu com a população masculina do país. Infelizmente, a América Latina tem sido governada, em algumas ocasiões, por pessoas psiquicamente desqualificadas mesmo. A democracia, exaltada sempre como o melhor regime, inadequadamente administrada, pode conduzir a permissividade.
A população cresceu, os recursos diminuíram os direitos humanos e igualitários tornaram-se visíveis. Populistas, messiânicos, aventureiros aproveitadores parecem estar sempre de plantão. Candidatos à chefia do Estado são submetidos na televisão à avaliações acerca do conhecimento sobre o país, sobre o entendimento do que seja a coisa pública, mas de sanidade mental nunca. Além dessas descompensações, no Brasil, presidentes e presidenciáveis chegam a desempenhar papéis ridículos em contato direto com o povo: Fernando Henrique passou mal comendo buchada de bode no interior do Nordeste; Aécio caiu de um jegue numa feira em Pernambuco; o Itamar Franco engasgou com o arroz de pequi dos goianos. Dilma trocava o Norte pelo Sul.
Este País é, de fato, muito grande e diversificado para ser conduzido pelo bom ou mau humor de um homem só. No espaço da Amazônia Legal cabem 42 países da Europa. A composição da população envolve cerca de 200 etnias. Mais de 100 etnias estrangeiras vivem por aqui. Somos sempre governados por alemão, italiano, português, libanês, africano, búlgaro, por famílias de ricaços como os Moreira Sales e de pobretões (até então) como o Lula. Já tivemos ministros japoneses, agora temos um colombiano na Educação. Compreender personalidade do brasileiro é realmente complicado. Complicamo-nos mais, quando tentamos nos explicar, a partir de formulações ideológicas de estrangeiros. Seria oportuno ler, pelo menos, Darcy Ribeiro.
Ao escolher Bolsonaro como presidente, a população demonstrou cansaço dessa gente que se diz detentora da verdade e que improvisa soluções, dando sistematicamente palpites sobre os caminhos da Nação, sob o falso amparo da ciência ou baseados em dispositivos constitucionais que eles mesmo inventaram. Recebi um vídeo mostrando como as elites formadoras de opinião fizeram projeções distorcidas das eleições de 2018 . Estão lá cientistas eméritos, sindicalistas, ex-ministros, líderes políticos e até ex-presidentes da República. Não era uma questão apenas de cinismo, mas de ignorância de alguns e má fé de outros. Nunca se alcançara a justiça social, com essa alternância de sujeitos narcisistas, egoístas e oportunistas.
Esse cenário – e não o obsoletismo do equipamento militar - aconselha a não entrar em guerra nenhuma, seja com quem for, seja qual o motivo. Vencedor ou perdedor, esse tipo de liderança seria capaz de vender o País. A Nação correria o risco de ter um apagão, e o território de ser fragmentado. Democracias frágeis como a brasileira abrem espaço para quem tem a guerra como divertimento ou como método. Há muito tempo, 24 nações indígenas do Alto Rio Negro são estimuladas à criação de um Estado independente. O Triângulo Mineiro sempre quis ser um unidade federativa autônoma. O Sul do Pará também. No Brasil dos pampas sempre há um desejo latente de separação, manifesto em várias pesquisas. Portanto, se as pessoas que vem instigando a guerra com a Venezuela não são normais, deviam estar mesmo num hospício, se ainda existirem. E, se em pleno uso da sanidade mental, na cadeia.
* Jornalista, professor doutor em História Cultural, membro da Academia Nacional de Letras.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!