Por Fabrício Augusto de Oliveira*
O ministro da Economia, Paulo Guedes, não gostou de ser chamado de tchutchuca com os ricos e tigrão com os pobres pelo deputado Zeca Dirceu, do Partido dos Trabalhadores (PT), na audiência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados sobre a reforma da previdência. Perdeu o controle e revidou com expressões de baixo nível inapropriadas para uma autoridade da República. Uma lástima.
Apesar do tom ofensivo usado pelo deputado, a verdade, no entanto, é que ele foi feliz na comparação, porque não é só o ministro, mas, de modo geral, os governos no Brasil que agem dessa maneira. Como se sabe, tchutchuca é, de acordo com a música que deu origem à expressão, uma forma carinhosa de se referir a uma mulher bonita, afável e dengosa. Na tradução do deputado, seria o tratamento carinhoso e camarada que o governo concede para o capital e as camadas mais ricas da sociedade vis-à-vis os pobres, tratados a ferro e fogo. Nada mais, portanto, que a verdade, mas essa, quando dita, costuma despertar suscetibilidades.
Paulo Guedes é de uma escola, a Escola de Chicago, centro de excelência do pensamento neoliberal, para a qual os pobres são considerados como problema para a boa gestão econômica por demandarem serviços excessivos do Estado e pressionarem seus gastos, provocando desequilíbrios orçamentários e comprometendo a estabilidade macroeconômica. A receita dessa escola para corrigir essa anomalia é bastante simples, considerando que seus membros não pensam em termos de sociedade, mas apenas de indivíduos desenraizados para os quais a questão da solidariedade simplesmente não existe: basta extinguir as políticas sociais que explicam o descontrole fiscal ou, em outras palavras, adotar a terapia da “solução final” para os pobres para sanear financeiramente o Estado e recuperar o seu papel de agente responsável unicamente pela estabilidade macroeconômica.
Para essa escola, o Estado não deve, assim, meter o bedelho para tentar resolver a questão social, nem para reduzir as desigualdades inerentes ao sistema, porque isso mais prejudica do que favorece o crescimento econômico, cabendo a cada indivíduo, livre para fazer as escolhas que lhe são mais vantajosas, encontrar meios para sobreviver. Descarta, dessa maneira, o papel do Estado no capitalismo de promover ações necessárias para manter a coesão social, indispensável para que o sistema se reproduza, supostamente em nome da estabilidade da moeda para manter a economia pulsante. Uma bobagem, que nada mais quer dizer que com ela o que se procura, de verdade, é preservar a riqueza acumulada, mesmo que correndo o risco de conduzir o sistema para o colapso diante do aumento das desigualdades e da pobreza. Mas, enfim, trata-se do pensamento dominante, vendido como verdade absoluta, que tem como hipóteses indivíduos desfrutando de condições semelhantes e um mercado capaz de corrigir, por seus próprios mecanismos, os problemas e as crises da economia.
Embora Guedes tenha feito algumas insinuações de que poderia envolver os setores mais poderosos economicamente no ajuste fiscal que procura realizar, caso da revisão do sistema de incentivos fiscais e da taxação dos lucros e dividendos recebidos pelos acionistas de empresas, ou até mesmo a redução dos recursos destinados para o Sistema S, a essência de sua proposta está contida em dois planos por ele apresentados: o Plano A e, caso este não dê certo, o Plano B.
O Plano A se refere à reforma da previdência social, tida como a mãe de todas as reformas, a qual, na análise de vários especialistas no tema, mesmo considerando sua necessidade em virtude da dinâmica demográfica, representa um assalto aos mais pobres, tal a sua arquitetura, ao mesmo tempo que garante privilégios para alguns setores, como o militar, por exemplo, além de sinalizar também descompromisso com a questão da solidariedade, caso aprovado o regime de capitalização, no qual cada um terá de construir sua própria aposentadoria sem garantia de receber o benefício correspondente nem mesmo à contribuição feita.
O Plano B diz respeito, por outro lado, à extinção dos mecanismos de vinculação das receitas ao financiamento de determinadas políticas sociais, desobrigando o Estado de provê-las para a população e aumentando o espaço no orçamento para o mesmo destinar maior parcela dos recursos para o pagamento dos juros da dívida, como recomenda e exige o novo consenso macroeconômico.
Antes alternativo, o Plano B somou-se ao Plano A e passou a integrar o cardápio do ministro para a solução da questão fiscal, prevendo-se o envio para o Congresso de uma PEC de desvinculação das receitas tão logo seja concluído o processo de votação da reforma da previdência. Com esta, condena-se parte dos idosos que dependem do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e dos trabalhadores rurais à condição de miséria absoluta; com o fim das regras de vinculação, dá-se ao Estado a liberdade para alocar os recursos arrecadados da maneira que considerar melhor, o que, seguramente, não será com as políticas sociais que se pretende exatamente limitar com essa mudança.
Se não fosse tchutchuca com os ricos, Guedes poderia ter proposto, juntamente com uma reforma da previdência mais decente e justa, uma reforma da política monetária e também do sistema tributário. A primeira, para reverter o peso que representam os juros da dívida para os cofres públicos, que somam mais de R$ 400 bilhões por ano, número bem superior ao propalado déficit da previdência, e responsável por cerca de 90% do déficit nominal do Governo Central e do crescente endividamento do setor público. A tributária, para deslocar o maior peso da tributação sobre o consumo para a renda e a propriedade, como propõem os estudos da Anfip/Fenafisco, onerando mais as classes de maior renda e os detentores de maior riqueza, de forma a transformá-lo num instrumento mais favorável ao crescimento e à questão da equidade. Não são medidas, no entanto, que interessam a essas classes e nem contam com o apoio e empenho do governo para aprová-las, além de representarem uma heresia para o pensamento neoliberal.
Guedes se encontra, por enquanto, prisioneiro da reforma previdenciária para ensaiar os próximos passos da política econômica, enquanto a economia permanece em estado agonizante à espera de sua conclusão. Se não der certo, e tudo indica que isso deverá acontecer, terá a oportunidade de mudar o seu papel de tchutchuca com os ricos para o de tigrão, caso pretenda, de fato, dar outros rumos para o Brasil, o que será uma agradável surpresa; ou renunciar ao posto de comandante da economia, como vem ameaçando, confirmando a opinião do deputado. As apostas estão sobre a mesa para quem quiser se arriscar sobre o caminho que escolherá.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma Política Social, articulista do Debates em Rede e de O Beltrano, e autor, entre outros, do livro “Economia e política das finanças públicas no Brasil: um guia de leitura”.