Por Celso Bissoli*
A dimensão continental e as rupturas temporais da formação econômica do Brasil deram origem a um país marcado por desequilíbrios e assimetrias regionais. Desde a industrialização nacional, que consolidou São Paulo como centro dinâmico do país, as relações federativas foram marcadas pelas reivindicações dos estados periféricos por mais igualdade. Apesar das políticas nacionais de desenvolvimento, as disparidades regionais se mantiveram e, por isso, os estados criaram institucionalidades próprias e programas de incentivos fiscais para reduzir seu “atraso” econômico dotando regiões e setores produtivos de vantagens “comparativas” capazes de compensar a ausência de incentivos privados ao crescimento.
As guerras fiscais, como popularmente ficaram conhecidas essas disputas, ganharam força com a estrutura tributária do ICMS, principal imposto estadual, que atrelou a arrecadação dos estados à parcela da produção localizada em seus territórios. Mesmo que do ponto de vista nacional o ICMS seja um imposto sobre consumo, do ponto de vista dos estados esse imposto é, na verdade, um híbrido que incide sobre produção e consumo já que são adotadas diferentes alíquotas na origem e no destino.
As crises financeiras dos anos 80 e 90 reduziram o poder de ação do governo federal, que priorizou políticas macroeconômicas de estabilização e marginalizou as preocupações com o desenvolvimento regional. A saída dos estados foi ampliar as disputas com base no ICMS, movimento que foi acompanhado pela difusão dos ideais do desenvolvimento local endógeno e que serviu de justificativa para as disputas estaduais. Embora ações tenham sido impetradas junto ao STF para questionar o uso indiscriminado do ICMS, se tornou prática comum a reedição de leis assim que alguma era declarada inconstitucional. Nos anos 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o governo federal buscou impor limites às guerras fiscais ao estabelecer que os estados apresentassem estimativas orçamentárias dos impactos financeiros dos incentivos.
As guerras fiscais suscitam um questionamento: elas podem ser consideradas políticas de desenvolvimento regional? Se a resposta for afirmativa, não se pode avaliá-las somente do ponto de vista fiscal. Como em muitos casos os incentivos funcionam, na prática, como renúncia fiscal de uma receita potencial para os estados, a relação orçamentária não é tão óbvia e direta quanto parece. Esse descolamento dos incentivos em relação às finanças correntes dos estados explica porque a LRF, ao não estabelecer critérios para a receita incremental de ICMS, afetou apenas parcialmente as guerras fiscais. Assim, ao contrário do que se possa pensar, as guerras fiscais não tendem necessariamente a um movimento próprio de exaustão, esclarecendo, inclusive, porque estados endividados conseguem oferecer incentivos para atrair investimentos.
Questões fiscais à parte, resta considerar os demais fatores capazes de promover o desenvolvimento regional. De fato, a análise dos programas implementados pelos estados brasileiros indica forte preocupação com metas que ultrapassam a ampliação da arrecadação tributária, pelo menos em curto prazo, incluindo objetivos como geração de empregos e desenvolvimento de áreas consideradas prioritárias, sem grandes critérios seletividade.
Simulação realizada em um modelo de Equilíbrio Geral Computável tomando como base uma redução de 1% da alíquota nominal do ICMS no Espírito Santo incorpora resultados importantes às discussões sobre o tema.
O impacto imediato da redução da alíquota é uma queda praticamente proporcional na receita tributária (efeito de primeira ordem). Como o imposto é um elemento do custo de produção, as empresas capixabas se tornam mais competitivas nos diversos mercados (interno e externo), estimulando a expansão do investimento (2,18%) e do nível de emprego (1,00%). As famílias percebem um aumento do salário real (1,07%) e propagam estímulos sobre o consumo (2,05%). Como resultado, ocorre uma expansão do PIB estadual (1,62%) e movimentos de realocação regional são observados em relação ao trabalho (migração) e ao capital. Dessa forma, a expansão da base econômica do estado amplia a arrecadação tributária (efeito de segunda ordem), atenuando o impacto inicial causado pela redução da alíquota do imposto. Interessante observar que o PIB do estado cresce mais que o emprego, sugerindo que a defesa da guerra fiscal sob o argumento de geração de emprego deve ser relativizada.
As variações positivas em termos de crescimento, emprego, renda, consumo e investimento observadas corroboram os argumentos favoráveis à concessão de incentivos fiscais, especialmente se for considerada a ausência das políticas nacionais de desenvolvimento. Esses resultados ajudam a entender, pelo menos em parte, a vitalidade da guerra fiscal, contrariando a argumentação, frequentemente utilizada, de que a guerra fiscal “acabaria por si mesma”, pois a capacidade de gerar resultados seria limitada.
Apesar da guerra fiscal ser uma busca isolada por crescimento econômico, a simulação indica que, devido às relações de complementaridade produtiva, resultados positivos ocorreriam em outros estados que se beneficiariam do barateamento dos produtos capixabas e também do aumento na atividade econômica do Espírito Santo. Esses resultados contradizem a ideia defendida por muitos de que os benefícios dessas disputas, se existirem, ficariam restritos aos estados praticantes da guerra fiscal.
Em relação ao custo fiscal, o experimento realizado aponta para uma perda líquida de arrecadação no Espírito Santo, de forma que o efeito de segunda ordem, embora positivo, seria insuficiente para compensar o efeito de primeira ordem. Este ponto remonta à capacidade dos estados de suportar perdas de arrecadação decorrentes da guerra fiscal, uma vez que desde 2002 a maior parte dos estados já tem registrado déficits públicos recorrentes.
Por não haver um critério específico que permita comparar os efeitos apresentados, não é possível concluir, inexoravelmente, se a relação custo-benefício das guerras fiscais é positiva ou negativa em termos de desenvolvimento. Pela presença nos estados mais dinâmicos de economias de aglomeração que possibilitam o surgimento de rendimentos crescentes para as empresas, os estados menos desenvolvidos não conseguem atrair os investimentos necessários ao crescimento de longo prazo. Portanto, em um país com expressivas disparidades regionais, mesmo que as guerras fiscais se mostrem incapazes de criar instrumentos genuinamente endógenos de desenvolvimento, há claros incentivos econômicos para que as disputas estaduais persistam.
* Economista, Doutor em Ciências Econômicas e Professora na Universidade Federal do Espírito Santo.