Por Profa Dra. Neide César Vargas*
A reforma da previdência não pode ser reduzida a um mero plebiscito no qual nos posicionamos contra ou a favor. Muito menos pode ter na propaganda governamental as únicas bases para fundamentá-la. Isso porque os governos são passageiros e, em regra, buscam resolver seus problemas de curto prazo, varrendo para baixo do tapete as repercussões que toda medida econômica tem no médio e no longo prazo. Em particular uma área como essa que envolve na atualidade o destino de cerca de 35 milhões de famílias (benefícios previdenciários e assistenciais do INSS) e 737 mil famílias dependentes de aposentadorias e pensões pagas pelo governo federal. A isso ainda se agregam os aposentados e pensionistas vinculados aos governos estaduais e municipais, para os quais possíveis novas regras também valerão. É preciso ser prudente quando uma medida atinge mais de 140 milhões de pessoas ainda por cima considerando que não existe e nunca vai existir uma saída econômica definitiva, que resolva de uma vez por todas os problemas que eventualmente a previdência pública no Brasil possa ter.
Deve-se destacar que as projeções futuras, no campo demográfico e de impactos fiscais, são referências importantes numa discussão dessa natureza. Mas não podem ser os únicos aspectos considerados, notadamente levando em conta que as previsões geralmente envolvem 40 anos à frente e tem margens de erro extremamente elevadas. Adicionalmente, mudanças de peso no âmbito social e econômico podem alterar o curso das coisas num horizonte tão longo quanto esse. Levando em conta tais ponderações, é importante começar uma reflexão pela base, indagando acerca do papel que assume uma previdência pública num país.
O principal objetivo de um sistema de previdência pública é evitar que a maioria da população vivencie condições de vulnerabilidade e pobreza na velhice. E não existe experiência internacional que comprove o sucesso de se delegar essa função estritamente ao mercado. Sob a lógica do mercado apenas os segmentos de maior renda garantem tal tipo de proteção.
Ainda na atualidade o que predomina no mundo são regimes de repartição, grande parte deles públicos, nos quais prevalece o financiamento cooperativo com os trabalhadores da ativa bancando os benefícios dos aposentados, agregando como cofinanciadores as empresas empregadoras e o governo. Tais sistemas costumam sofrer, de tempos em tempos, mudanças pontuais em função das alterações na estrutura demográfica dos países bem com da sua capacidade fiscal. A despeito desses condicionantes, os regimes puramente de mercado são a exceção e os resultados no médio e longo prazo das iniciativas liberalizantes em países da periferia mundial têm sido questionados por determinadas análises.
Estudo da OIT (2018) mostrou que, em 30 países localizados na América Latina, Europa Oriental e África, os quais privatizaram de forma plena ou parcial o pilar central da previdência pública (no Brasil seria o equivalente ao Regime Geral da Previdência Social- RGPS - que alcança principalmente a esfera privada), entre 1981/2014, os resultados foram bem distintos do esperado. Além de deteriorar a capacidade do sistema de cumprir o seu papel, pela estagnação ou decréscimo das taxas de cobertura do sistema, a compressão dos benefícios e a ampliação da desigualdade de renda em termos de gênero, os ganhos econômicos não foram os prometidos. Aos altos custos fiscais de transição de regime e à elevação dos custos administrativos se somaram resultados negativos para as pessoas e para a economia. Isso porque houve concentração no mercado de seguros e efeitos limitados no mercado de capitais dos países. Efetivamente o que prevaleceu foi a transferência dos riscos de mercado e demográficos para os indivíduos com o empobrecimento da velhice. Desses 30 países, 18 reverteram em parte ou totalmente as reformas realizadas visando corrigir os graves impactos sociais que incidiram sobre a maioria da população, notadamente os mais pobres.
Esse é o maior risco da reforma da previdência proposta na atualidade, a PEC 06/2019. Tal reforma é distinta de todas as anteriores, propondo alterações profundas particularmente a mudança de regime de repartição para capitalização. Sequer esclarece em que termos isso seria feito posto que delega à lei complementar a ser posteriormente apresentada a regulamentação da iniciativa. Isso também se dá em uma série de outros pontos estratégicos que hoje são definidos na Constituição.
Na imensa lista de pontos que seriam desconstitucionalizados estão o rol de benefícios e beneficiários, os requisitos de elegibilidade para os benefícios, a definição da idade mínima, da carência, do tempo de contribuição, os limites mínimos e máximos de valor dos benefícios e do salário de contribuição, e, o que é ainda mais grave, as regras de cálculo e de reajustamento do beneficio. Além dos aspectos citados sairia da Constituição a definição da idade mínima e do tempo de contribuição dos regimes que diferem da regra geral (professores, policiais, agentes penitenciários, atividades nocivas, com deficiência, trabalhadores rurais) todos eles podendo ser posteriormente alterados por lei complementar. Em síntese, na forma como está proposta a mudança ela significa dar um cheque em branco ao governo federal para redefinir e mais facilmente fazer seguidas alterações na estrutura do sistema de previdência pública do país.
Com certeza existem aspectos desviantes nos sistemas de previdência existentes no país, notadamente no regime próprio dos servidores federais (RPPS). Tanto no regime próprio quanto no RGPS é fundamental idades mínimas mais aceitáveis bem como corrigir inequidades além de fiscalizar os desvios de recursos e as fraudes. Mas não se pode reduzir a questão da previdência a uma dimensão exclusivamente fiscal, pois mesmo aqui não ocorrerão ganhos no curto prazo e, numa eventual transição para um regime de capitalização, existem custos envolvidos que se mostraram acima do previsto nos países estudados pela OIT e sequer foram estimados para o caso brasileiro.
A previdência pública é antes de qualquer coisa uma política social e medidas drásticas podem não gerar os frutos prometidos e, o que é pior, podem gerar consequências profundas sobre toda a sociedade. O discurso governamental sustenta a ideia de que a iniciativa é que garante uma velhice tranquila para os jovens de hoje bem como para os já aposentados. Isso poderia até ser fato se ela fosse apenas paramétrica e não tão radical. Dada a sua radicalidade a proposta agrega incertezas que já foram vivenciadas por outros países e cujos riscos ao sistema não são pequenos. Também a promessa de que a economia voltará a crescer se a medida for aprovada pode até ser uma condição considerada necessária pelos atores econômicos mas jamais será condição suficiente. Nesse quadro de tantas incertezas e de impossibilidade de se oferecer garantias críveis de bons resultados econômicos e sociais o que deveria nos orientar é apenas a prudência.
* Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Conjuntura
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