Por Erlon José Paschoal *
Depois da recente comoção nacional, em virtude da exibição impiedosa da infâmia e da hipocrisia na vitória eleitoral fraudulenta e vergonhosa obtida através da mamadeira de piroca e do kit gay – um golpe com requintes de crueldade -, o país retornou às suas tragédias costumeiras, agravadas por um verdadeiro desmanche de setores estratégicos da economia, da democracia e dos direitos sociais. O muro que separa os que têm e os que não têm plano de saúde; o que podem e os que não podem pagar uma escola particular; os que possuem e os que não possuem um lugar próprio para morar; os que têm emprego e os que não têm emprego, e os que comem todos os dias e os que não comem todos os dias, recomeçou a crescer de maneira bozonazimente assustadora. Enquanto protagonista do apartheid social tupiniquim, a função deste muro hediondo continua sendo separar e, sobretudo, excluir. Nossos dirigentes políticos patéticos e truculentos perderam todos os escrúpulos e o senso de ridículo. Predominam em suas atitudes a desfaçatez, a torpeza e o cinismo ostensivo, e obviamente não têm tempo para pensar nessas bagatelas, nesse nhenhenhém pessimista.
A mídia hegemônica tornou-se assumidamente um instrumento de desinformação e de deturpação e deformação dos fatos relevantes tentando quase sempre impedir de maneira sórdida os avanços democráticos e o desenvolvimento do país. Para Miguel do Rosário "o poder de manipular, de produzir crises, de interferir na democracia, é o que a grande mídia brasileira mais preza, porque é através deste poder que ela consegue destruir qualquer adversário político ou concorrente comercial, e arrancar financiamentos e recursos publicitários do governo."‡
O Judiciário, por sua vez, tem mostrado uma faceta até há pouco dissimulada e encoberta pelo manto da retidão e do bom comportamento. Que bom seria se todos tivessem demonstrado contra os incitadores do estupro e da tortura, os juízes ditadores e partidários, os usurpadores do governo, os bandidos golpistas, a impunidade e a corrupção endêmicas, as fraudes conjunturais, os bravateiros poderosos e a dinheirama na Suíça, a fábrica de fakenews e as fakadas, as milícias bozonazis e seus matadores profissionais, a Micheque Queiróz e seus laranjais, o mesmo rigor, a mesma prepotência externada contra os que lutam por seus direitos, os sem-terra, os estudantes secundaristas, os esfomeados, os indígenas, os movimentos sociais organizados, os encarcerados e os sem-tudo, e claro contra tudo o que Lula representa, preso até agora sem crime e sem provas. Obviamente, contra os primeiros resta quase sempre o silêncio conivente. As afinidades e a cumplicidade entre os impostores acabam geralmente determinando o destino misterioso das tais investigações rigorosas impetradas pelas autoridades competentes. Será que o Brasil é mesmo o eldorado dos marajás?!
As palavras-chave dos primeiros meses de governo golpista foram “privatização” - das estatais, das empresas públicas básicas, do ensino, da justiça, da saúde e, em muitos casos, até do dinheiro dos cofres públicos - e, é claro, da “arbitrariedade permanente” das leis para poucos, dos privilégios, do congresso, da desfaçatez coronelista, dos oligopólios, das cirandas financeiras o-dinheiro-foi-pra-caxangá, das mansões offshores, da briga da mídia sórdida e golpista pelas verbas públicas, das cortinas de fumaça fundamentalistas e farsantes e da estrutura política arcaica e autoritária.
Nosso país parece ser um dos únicos onde a vítima é culpada, a polícia é bandida, o hospital é o pior lugar para se curar, o serviço público é visto como favor e político é sinônimo de larápio e vigarista; onde a certeza da impunidade torna os crimes mais hediondos, os assassinatos mais gratuitos, as patifarias mais desavergonhadas, algo trivial e cotidiano. Palavras como “sequestro relâmpago”, “extermínio”, “desova”, “acerto de contas”, “esquema”, “queima de arquivo”, “delação premiada”, “chacina”, “bala perdida”, “80 tiros de advertência”, “assassinato de Marielle e Anderson” e “crime de mando” tornaram-se, infelizmente, corriqueiras e banais. Além disso, sabemos muito bem que numa ordem social na qual o crime compensa, a reabilitação e a recuperação de grupos sociais que vivem à margem da sociedade, sem qualquer apoio do poder público, fica cada vez mais difícil em meio ao descaso, à fome e à violência generalizada.
É chegada, enfim, a hora de mudar e de crescer interiormente. Nosso desafio agora é sem dúvida buscar soluções práticas imediatas e inventar estratégias coletivas para enfrentar questões tão complexas, mas sem perder a alegria de viver e a vontade de transformar a vida. Há sempre muitos caminhos. Como ainda é permitido sonhar, imaginemos, então, a superação deste momento hediondo da História do país, nossas riquezas mais bem distribuídas, o acesso amplo e irrestrito à educação, à saúde e à arte... uma sociedade mais solidária, mais ética, mais responsável e mais justa. Mas para isso é preciso lutar! Lutar com vigor e determinação, afinal a conquista da democracia, da justiça e da dignidade humana sempre foi uma luta sem fim.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.
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