Por Ester Abreu Vieira de Oliveira*
Toda arte é objeto de convenções e a figura feminina nas artes, em geral, foi e é ainda vista como menos importante no espaço cultural e da literatura. Musa, mãe, esposa sem contato com o ambiente externo ao lar se viu impossibilitada de ser reconhecida como possuidora de pensamentos que condizem com as proposta socioculturais da sociedade ocidental (parte do mundo que participamos), e muitas vezes, teve que recorrer a pseudônimos para publicar o seu texto, por ser mulher e ser um tabu seu nome aparecer em texto que seria lido por muitos.
No Brasil, a marginalidade da escritura literária feita por mulheres imposta por uma sociedade machista não difere muito do que acontece no resto do mundo. E se muitas mulheres, como a escritora capixaba, Lidia Bisouchet de Freitas (1908-1997) chegam ao ostracismo, ou quase, se deve a ser mulher. Contudo seu nome, definitivamente, está firmado na literatura brasileira. Ela é Patrona da Cadeira 32, da Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL), que está ocupada pela escritora capixaba Magda Regina Lugon Arantes, desde 1998. Francisco Aurélio Ribeiro, (p. 47) aponta que:
Apesar de o professor Almeida Cosin ter afirmado, em 1944, ser Haydée Nicolussi e Lidia Besouchet, ao lado de Rubem e Newton Braga, os quatro maiores valores da expressão literária capixaba, as duas escritoras foram ignoradas, ou descartadas, na fundação da AFESL, em 1949. Agostinho Lazaro é taxativo. Segundo ele, a exclusão delas se deveu à sua opção ideológica na juventude, o socialismo comunista [...]”
Lidia Bessouchet nasceu em Porto Alegre, filha de pais nordestinos, criou-se em São João del Rei, estudou em Vitória (ES) e se casou, no Rio de Janeiro com o capixaba, Newton Freitas. Participou, ativamente, nas campanhas revolucionárias brasileiras. Exilou-se em 1937. Na Argentina, onde morou durante 10 anos, começou sua atividade literária na Prensa.
Por motivo da profissão do marido, Adido Cultural, residiu em várias cidades: Bruxelas, Londres, México, Argélia, Paris. Em 1951 colaborou no Estado de São Paulo e no Globo. Suas várias residências lhe proporcionaram a oportunidade para a pesquisa variada, em arquivos, bibliotecas, museus.
Humilde, com uma produção de gêneros e temas variados, dizia que não era uma escritora, mas “uma mulher que simplesmente se interessa por tudo”. Foi professora primária, como dizia, “por engano”, “porque não servia para ensinar, mas para aprender.” E confessava que sua grande aprendizagem advinha de suas leituras em almanaques e em livros. As pessoas que a conheceram a descrevem como amável e de diálogo consistente, boa ouvinte dos intelectuais que frequentavam a sua casa (Mário de Andrade, Rubem Braga, Carlos Lacerda, Di Cavalcanti, Graciliano Ramos, e outros mais políticos e escritores amigos de Newton. Certa vez, questionada por um repórter sobre o fato de ser confidente de pessoas tão ilustres, declara que “o álcool [cachaça] provoca confissões”. No Jornal do Brasil (1975) Gilse Campos disse que “um papo com Lídia Besouchet pode durar dias. Ela se diz “um animal mais familiar que social”, porque não bebe uma gota de álcool.
Escritora de grande produção, Lidia escreveu crítica literária, romances, contos, poemas, ensaios, biografias, monografias, livro infantil e obra teatral, publicados em jornais e editoras do país e do exterior. Abordava em seus textos temas diversos sobre: Pedagogia, História do Brasil, Literatura, Folclore, Arte, condição da mulher na sociedade, e outros temas.
Mulher moderna, feminista, inteligente e de fibra, nos seus artigos argumenta com propriedade as ideias que defende:
Sobre a poesia diz que ela “busca em si mesma a força total”, que é “tênue, mas discordante com a realidade e só consegue sair de si mesma para morrer”, que “o poeta deve brunir a madeira de sua criação para conseguir o êxito”, e que “deve aproximar-se de seu eu.”
Sobre o prosista afirma que “pode expressar a paixão, rebeldia social, construção, destruição, morte e aurora.”
Sobre o humor declara que: “Não é possível obter os resultados poéticos e humorísticos sem a dosagem perfeita da realidade criativa”; e que “o humor está na dosagem gradual no equilíbrio das linhas e a paciência no aplainar da madeira é que permitem o acabamento irônico, feliz, completo, no mais alto conceito do temo literário”.
Sobre a mulher, questiona o porquê econômico, social, cultural, intelectual da inferioridade da mulher frente ao sucesso, fama e genialidade dos homens, como escritores, filósofos, pintores, escultores, compositores e desiludida chega a proclamar: “Quanto ao gênio, ficamos ainda por muitos séculos a esperar que apareça uma mulher digna mesmo deste nome.”
Lidia Bisouchet foi uma das mais entusiásticas propagandistas do Brasil e das coisas brasileiras. Divulgava a cultura e nossa terra escrevendo em português inglês, francês e espanhol. Durante a época em que viveu na Argentina teve uma permanência ativa. Em Buenos Aires, publicava frequentemente textos críticos literários sobre escritores brasileiros, os clássicos (Tomás Antonio Gonzaga, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Raul Pompéia, Aluízio de Azevedo, Euclídes da Cunha) e os modernos (Mario de Andrade, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso) como também sobre escritores argentinos e espanhóis tais como Federico García Lorca e Miguel de Cervantes. No Brasil, colaborou com artigos no Jornal da Tarde e no Jornal do Brasil. No Espírito Santo, segundo Francisco Aurélio Ribeiro (p.41) “[..] nada se encontra em revistas e jornais da época de sua produção literária”.
Os livros que Lidia Besouchet escreve, ligados à História, focalizam figuras históricas: Aleijadinho, Nassau, Visconde do Rio Branco, Barão de Mauá, Barão de Rio Branco e D. Pedro II. São importantes editoras que publicam suas obras. A obra Barão de Mauá y su época, é uma publicação da América Econômica de Buenos Aires. Escreveu outras obras sobre o Barão de Mauá, sendo uma editada pela Coleção Brasiliana, fruto de pesquisa em correspondência inédita feita em Entre Rios, Argentina. Pela Nova Fronteira estão as obras: Mauá e seu tempo, Jose Maria Paranhos, Visconde do Rio Branco. Exílio e morte do Imperador (1975) e Aventuras do tio Macário.
Sobre Exílio e morte do Imperador, fruto de pesquisas realizadas em Lisboa e Paris, Danilo Gomes, no Estado de Minas, em 25/11/1989, comenta que “é uma obra extraordinária [...] uma lição para o presente e o futuro”. Também vários jornais do país, na época do lançamento dessa obra, consideram-na como uma das mais importantes da historiografia nacional dos últimos anos. Esse livro foi escrito por solicitação de Assis Chateaubriand, em 1996, para que Besouchet esclarecesse aos brasileiros o período de que se seguiu ao banimento da família Imperial. Ela levou cinco anos investigando, visitando cidades como Bordeau, Strasburg, Vichy, Vierzoncher, Munich, Petrópolis e o Castelo de Barral. Nessa obra, autora expõe a forte personalidade de D. Pedro II, seus contatos desde a juventude com as mais destacadas figuras do século XIX. Aprofunda as dolorosas experiências de vida política no drama da Guerra do Paraguai, os dilemas da controvérsia da “questão religiosa” e o desenlace da crise militar que provocou a Proclamação da República. Mostra a autora o Imperador como expoente da intelectualidade brasileira, afligido pelo desejo de viver o amor em toda a intensidade de seu ser, mas um homem do século XIX, um século moralizante, e apresenta a dualidade de expressão que presidiu a vida do imperador que se revela, nitidamente, todas as vezes que ele deixa a terra brasileira e realiza viagens ao estrangeiro. Segundo a autora, D. Pedro II era “a pessoa mais importante de toda a História do Brasil”.
Na obra infantojuvenil, As aventuras do tio Macário, editada em língua espanhola, numa coleção argentina da Ediciones Peuser, com uma tiragem de doze mil exemplares, mostra um personagem excêntrico, milionário, conhecedor da história e da ciência as quais interpreta à sua maneira, que ama e compreende os animais com os quais dialoga e filosofa, tratando-os como amigos.
Alguns de seus ensaios se encontram nas obras Diez escritores del Brasil, publicada pela M. Gleizer, em Buenos Aires, em 1939, com 121 p. e Literatura del Brasil, publicação da Editora Sudamericana.
Seus romances são: Condição da Mulher, Mestiço, Cidade do exílio e Inocência. Cidade do exílio, editada pela José Olympio, em 1961, é apreciada pelo romancista argentino, Eduardo Mallea, como “o plano mais alto a que chegou o romance brasileiro de introversão.” Condição da Mulher, publicado pela Editora Sudamericana de Buenos Aires, em 1945, oferece a algumas mulheres citadas dizendo: “Dedico este libro al recuerdo de toda esas mujeres que llenaron mi vida me colmaron sus desesperanzas y sus ilusiones.” Segundo Francisco Aurélio (p. 44) o Instituto Progresso, São Paulo, depois o reeditou. Segundo ele a obra é claramente autobiográfica “retrata, ficcionalmente, diversos perfis de mulheres divididas entre a luta revolucionária, o socialismo comunista, e o papel que lhes reservava a sociedade tradicional da época: mãe, esposa, dona de casa, ser submissa e apolítica. [...[ A história tem um final romântico, conservador, tradicional, do casal apaixonado, deitado na praia, o que confirma o destino de mulher antes negado pela narradora (Amar e Sofrer).” Segundo este crítico (p. 45), “Lidia Besouchet é uma boa ficcionista. Seu estilo ágil, naturalista, a aproxima da estética realista-socialista daqueles idos. Mas sem a técnica e o domínio da narrativa de um Graciliano Ramos, pode ser comparada, com alguma restrição, a Raquel de Queiroz, da mesma geração, em seus primeiros romances.”
Lidia Besouchet representa a mulher capixaba que extrapola as fronteiras entre os limites de mar e terra. Se, ela não foi ou não está sendo muito conhecida no Espírito Santo como foi em outros Estados e fora do País, é um nome que deve ser lembrado nos estudos acadêmicos.
* Professora Emérita da Ufes, membro do IHGES, da AEL, da AFESL, da APEES.