Por Antonio José Alves Junior* e
Ricardo Graz* *
Há muito tempo reina uma confusão na opinião pública, incluindo em sua parte mais esclarecida, sobre os financiamentos do BNDES às exportações brasileiras para países como Angola, Argentina, Bolívia, Cuba, Equador e Venezuela. A confusão começa com o descuido na linguagem, em que muitas vezes o termo “financiamento às exportações” é substituído, por ingenuidade ou má-fé, por “dar dinheiro”. A coisa continua, a partir daí, se desdobrando: “se o Brasil precisa de tanta coisa, pra que fazer metrô na Venezuela”?
Tem sido difícil dissolver tais mal-entendidos. É tão claro que exportar produtos ou serviços não significa doar. É fácil ver que o financiamento à exportação não é muito diferente do que o financiamento ao consumo, conhecido por todos, que em nada se parece com um ato de doação! Ao contrário, se ouve muito por aí uma reclamação sobre os juros elevadíssimos para comprar geladeiras e fogões. No entanto, parece ser muito difícil compreender, por analogia, o que significa o financiamento às exportações.
Além da aridez do tema financeiro e do pouco interesse para a vida cotidiana, na raiz da confusão estão as alegações de que o financiamento aos países listados acima tem fundo ideológico. Não raro, se ouve, de representantes colocados pelo povo no Congresso Nacional, referências ao BNDES que nada mais são do que ultrajantes. Que sentido faz dizer que “o Banco deu dinheiro pra Cuba ou pra Venezuela para alimentar o comunismo”?
Esse posicionamento simplório, ainda que seja um desserviço ao país e um ataque frontal aos exportadores brasileiros e aos trabalhadores de suas empresas, parece encontrar seus crentes. Não fosse por isso, os diversos bons argumentos que foram oferecidos repetidamente para dissolver essa visão delirante teriam logrado efeito. Um sem número de vezes já se mostrou que o recurso vai para o exportador brasileiro e, portanto, não sai um dólar do país; que o país financia exportações para o mundo todo, mas, principalmente para os Estados Unidos; que os financiamentos feitos pelo BNDES são cobertos por garantias; que o sistema de garantias públicas ao financiamento às exportações arrecadou mais prêmios do que pagou indenizações; e que dezenas de milhares de empregos de qualidade foram gerados para brasileiros com esse apoio. E a despeito disso, é só esperar que aparece um colunista de jornal, um “especialista” ou um político dizendo “o BNDES deu dinheiro pra Bolívia”.
Por detrás dessas acusações levianas e gravíssimas, reside a batalha política e ideológica, travada com armas que não atendem ao interesse nacional, é fato. Ocorre, contudo, que estamos diante de uma situação inusitada, em que o interesse nacional foi deslocado em nome sabe-se lá do que. Vejam as informações que emergiram com as perguntas feitas pelo deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, ao ex-Presidente do BNDES, Joaquim Levy, na atual CPI do BNDES, na última quarta-feira, dia 26.06.2019.
Numa CPI em que, mais uma vez, o ponto de partida parece ser a concepção de que o BNDES “deu dinheiro pros comunistas”, foi, no mínimo curioso, ouvir o deputado começar perguntando: “o que deve fazer um banco quando seus credores não pagam?”. A resposta de Joaquim Levy, a partir de sua larga experiência profissional, não poderia ser outra: cobra-se, respeitando procedimentos e análises de conveniência. Mas, em última instância, ele está certo, cabe ao credor cobrar.
Eis que surge uma revelação inesperada: o deputado informa que o governo brasileiro se recusa a receber a Venezuela para negociar o pagamento de dívida atrasada. Como os empréstimos do BNDES foram cobertos pelo Fundo Garantidor de Exportações, cabe agora ao governo cobrar. Mas, então, por que o governo se recusaria a receber, a negociar? Cabe ao Governo Federal desmentir ou explicar essa situação o quanto antes, o que ainda não ocorreu.
Na falta de respostas, estamos livres para especular sobre as causas dessa atitude lesiva ao interesse nacional. Seguem algumas hipóteses. A primeira delas é que, a despeito da qualidade inquestionável dos quadros técnicos que estão no ministério da Economia, em sua maioria egressos da Fazenda, do Planejamento e Desenvolvimento, Indústria e Comércio, não é possível descartar a falta de orientação dada por Paulo Guedes para o tratamento desses assuntos. Sua reação frente a uma repórter argentina, em uma de suas primeiras entrevistas na condição de ministro, respondendo-lhe que não queria saber dos vizinhos, demonstrou, se não o seu desprezo pela América Latina, pelo menos o despreparo para lidar com o comércio regional. O ministro Ernesto Araújo, já não é mais novidade para ninguém, não ajuda muito a esclarecer a situação e nem incentiva soluções negociadas. Na verdade, as tem prejudicado com suas doutrinas inovadoras. Nesse ambiente, como é óbvio, é difícil para os servidores tomarem iniciativas, uma vez que não fica claro o que quer o governo.
Às dificuldades, digamos, “operacionais” se somam os limites auto impostos pelo governo Temer, com a entrada do governo brasileiro no Clube de Paris, no fim de 2017. A proximidade do Clube, é bom que se diga, há tempos tem sido considerada uma vantagem para o Brasil pelos homens das finanças, representados pela figura de Henrique Meirelles. Os membros do Clube estão unidos pela regra de comparabilidade de tratamento. Por ela, as negociações bilaterais são substituídas pela negociação do país devedor com todos os países membros do Clube. Isso, em tese, reforça o poder de cobrança ao devedor, uma vez que se trata do bloco de grandes credores no mundo.
A adesão ao Clube de Paris pode, no entanto, trazer problemas para o País, especialmente se há possibilidades de negociações bilaterais em termos mais vantajosos com seus devedores. No caso da dívida atrasada com a Venezuela, por exemplo, o Brasil perde capacidade de negociá-la invocando as históricas relações comerciais, culturais e as possibilidades de realização de projetos de interesse mútuo no futuro. No Clube de Paris, a Venezuela deverá oferecer as mesmas condições para todos os membros com quem tem dívidas, e não raro essas negociações no Clube só começam com um substancial desconto no valor da dívida. Não obstante, o Clube de Paris é um arranjo informal e, de mais a mais, oferece raios de manobra para nações soberanas. Assim, ainda que possa se tornar um obstáculo às renegociações, não é uma impossibilidade.
Para quem ouviu com atenção o que disse o deputado Glauber e está acompanhando o noticiário, basta juntar as peças que emerge uma outra hipótese. Ela é mais grave do que as anteriores, pois não reflete problemas administrativos nem compromissos institucionais mais amplos. O Governo Bolsonaro se recusaria a receber os venezuelanos porque...não reconhece Maduro como Presidente da Venezuela!!! Assim sendo, só negociaria dívidas atrasadas com o autoproclamado presidente Juan Guaidó! Como Guaidó não é o presidente de fato, o governo prefere não negociar centenas de milhões de dólares em dívidas atrasadas, mesmo tendo o devedor manifestado vontade de negociar! Para que o cidadão comum entenda, o Brasil hoje se comporta com um empresário que tem valores a recuperar, que além de não tentar fazer novas vendas, decide não receber o devedor para negociar. Uma atitude insólita na história do... capitalismo! Seria esse o preço que o atual governo decidiu fazer o Brasil pagar para demonstrar seu alinhamento incondicional a Trump, que impõe um bloqueio econômico à Venezuela?
É um absurdo que o governo não tenha vindo a público esclarecer essa situação após as revelações. “Isso daí”, como diriam os condutores do bloco no poder, é que custa muito dinheiro e provoca instabilidade. Como a coisa está, a crítica ao BNDES não passaria de um efeito do mecanismo de projeção, tão bem explicado por Sigmund Freud: a acusação feita ao BNDES e ao governo do PT, de ter provocado prejuízos ao Brasil com base em ideologia seria, na verdade, uma confissão de que o atual governo assim age. Dessa conclusão preliminar eclode indagação: a “projeção” seria apenas o resultado de um delírio ou, também, um véu que oculta interesses inconfessáveis?
*Professor de Economia UFRuralRJ
** economista
Fonte da Foto: A Gazeta do Povo