Ester Abreu vieira de Oliveira*
Borges escreve, quando o narrador abarca um mundo no Aleph, que “Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham como transmitir aos outros”.
Como se num Aleph eu mirasse um incêndio na Estrada de Ferro Leopoldina, em Muqui, no Entre Morros, dele quero falar, apontando o angustiante infinito momento, porém, se minha memória falseia, devido ao afastamento temporal em que o real existiu, desculpem-me.
Fogo, chamas, labaredas, incêndio.... O coletivo de fogo é incêndio? Não sei, mas reconheço que o seu fim é trágico. O fogo queima, a labareda abrasa o incêndio devassa. Mas o fogo, em si mesmo é benéfico, porém trás desvantagens. A fumaça irrita os olhos e prejudica os pulmões. Pode queimar a pessoa e os alimentos e pode o ambiente ficar infestado de doença num local fechado em reunião de pessoas.
Mas o fogo vem seduzindo o homem. Conforme sua intensidade traz devaneios. Ele aconchega as pessoas durante o inverno e sara as feridas. O homem sempre dele necessitou para proteger-se à noite e cozer os seus alimentos.
Conta a lenda que o mito grego, Prometeu, considerado o defensor da humanidade, furtou o fogo de Héstia, a virgem da família, a responsável pelo agradável aquecimento da lareira, para dá-lo aos mortais que puderam aquecer-se e alimentar-se com melhores vantagens. Zeus, temendo que os mortais adquirissem poder que suplantassem aos deuses, o puniu, deixando-o amarrado em um rochedo por todo o sempre e todos os dias uma águia vinha comer o seu fígado. Este se regenerava no dia seguinte.
Segundo Bachelard, em seu estudo crítico e epistemológico sobre o fogo, ele não nasce de um friccionar de elementos, ou pedras, mas do amor. Assim, do conceito desse filósofo, se deduz que o fogo nasce para agradar alguém. As associações que fazem dele com o amor são repetitivas na poética. Ao falar nesse tema, não podemos nos esquecer dos versos em que Camões faz a metalinguagem do fogo: “Amor é fogo que arde sem se ver,/é ferida que dói, e não se sente.”
O fogo tem cores diferentes. Suas chamas adquirem a nuança do produto queimado. Assim pode ser azul, vermelho, amarelo, verde, violeta e invisível na queima de um metanol.
Os incêndios são sempre devassadores e cruéis. A História Medieval nos remete a acontecimentos de todo um patrimônio extinguido pelas chamas: castelos, mosteiros, igrejas com obras de artes, documentos e livros.
Ainda, assinalado por crueldade, recordamos o célebre incêndio, provocado pelo Imperador Nero, em Roma, quando mandou queimar os cristãos, fazendo com que os corpos, em chamas, iluminassem seu jardim. Outras desastrosas lembranças são a bárbara destruição da Biblioteca de Alexandria, no Egito, por ordem de Amir ibne Alas, e a queima de livros na Alemanha Nazista, em praças públicas, com a presença da polícia, bombeiros e outras autoridades.
Não só por maldade humana há incêndios, mas podem ocorrer, por fenômenos naturais, como raios, descuidos e por falta de revisão de equipamentos, mas sempre o prejuízo é grande.
Em 21 de dezembro de 2015, em São Paulo, um incêndio destruiu dois andares no Museu de Nossa Língua ou na Estação da Luz, onde tive a oportunidade de um dia, ali, perceber a variedade de línguas indígenas do Brasil e um vasto conteúdo da língua portuguesa.
Em 02 de setembro de 2018, o incêndio no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, destruiu uma grande parte de um patrimônio de 200 anos de história e transformou em cinzas: fósseis, múmias, registros históricos, obras de arte. Durante o seu devastar pedaços de documentos queimados voavam pelas ruas como línguas incandescentes.
Em 17 de abril de 2019, houve um incêndio na Catedral Notre Dame de Paris, templo gótico, localizado na Ilê de la Cité, dedicado à Virgem Maria, que começou a ser erguido em 1163 e levou 180 anos para ser reconstruído. De certa forma, essa catedral luta e tem lutado pela sua subsistência. Foi poupada pela destruição nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas durante o devastador fogaréu, as redes sociais mostraram as imagens do incêndio que tornava cinzas documentos, destruía vitrais, esculturas ornamentais e peças do centenário museu. Foi sensível a todos os que assistiam às incandescentes colunas subirem ao céu. Visão in loco ou por comunicações on-lines trouxe lágrimas. O mundo acompanhou a tragédia nessa famosa catedral, visitada por turistas do mundo todo e lembrada na história, romanceada de Vitor Hugo, do Corcunda de Notre Dame. Nesse templo ocorreram fatos históricos como a reabilitação de Joana D`Arc, a coroação de Henrique IV e de Napoleão Bonaparte e onde eram famosas as missas dominicais do meio-dia ao som do órgão de cinco teclados enriquecendo a vida litúrgica. É nesse ambiente musical de cantos, cheiros de incensos que um dia fui envolvida pelo mistério do ambiente místico. Momento sublime e inesquecível.
Labaredas incendiárias eu presenciei em queimadas que se faziam para renovar a terra e adubá-la com as cinzas e sanear o campo exterminando lagartas e cobras, numa fazenda onde lecionei.
Com essas desculpas colocava-se um cigarro aceso em uma moitinha de capim seco e esse inocente fogo se alastrava e chegava ao bambuzal. Aí era terrível. As altas labaredas enchiam a paisagem de luz e o silêncio do campo era cortado pelos estrondos dos caules do bambu. Eram ruídos, gritos do proprietário com o alastro do fogo inconsequente. Eram dores, sustos, gritos, palavrões. Nesse clima ficava espantada, o coração suspenso e a voz em oração.
O incêndio é terrível e angustiante para quem o sente e ou para os que dele sofrem consequência. Um eu presenciei, mas não tão histórico como os acima citados que destruíram dois importantes patrimônios culturais. Vivenciei um, sim, em minha juventude, numa destruição ocorrida, à beira linha, no Entre Morros, na cidade de Muqui, ES, quando chamas iluminaram a noite e atormentaram vidas. E, como escreveu Borges no Aleph, “nossa mente é porosa para o esquecimento [...] sob a trágica erosão dos anos”. Assim, passarei a recontar o fato para que possa reavivar minha memória e a de muitos que do episódio se esqueceu.
Era em uma tardinha, de não me lembro qual mês. Talvez maio, por me parecer, ainda, que a tarde estava meio fria e o dia se ia turvo. Nesse entardecer, um trem de carga descarrilou (assim o identifico, pois havia naquela época trens de passageiros matutino, noturno e misto (carga e passageiro).
O fato ocorreu em uma curva entre um alto barranco e um profundo declive que dava para o rio. Em um de seus vagões, justo onde iniciou o incêndio, havia engradados de água mineral, possivelmente de Raposo, Caxambu ou São Lorenço como era o costume.
Um socorro de Cachoeiro de Itapemirim, num trole, chegou já à noitinha e para melhor identificar o ocorrido acendeu uma lanterna de linha da época (lamparina, chamada) que produzia fogo acendo-se um fio encharcado de querosene. Mas havia escorrido gasolina de outro vagão e, imediatamente, o fogo espalhou pelo barranco subindo pelo pasto que cobria o morro adjacente.
Eram altas as labaredas. De longe eram avistadas. O real e o imaginário possível aconteceu. Um boato de pernas longas percorreu ruas, casas e quintais... anunciando que a gasolina que havia provocado o incêndio escorria até o rio e que gasolina e água não se misturam, como o óleo e a água, e que toda a cidade iria incendiar-se, começando pela parte beira rio. Correrias e gritos surgiram, acompanhados de choros histéricos. Saída de suas casas. Algumas pessoas para Boa Esperança ou para outros lugares que lhes pareciam mais seguros. Rezas. Cochichos: “Toda a cidade será extinta como Sodoma e Gomora” (Bem nessa época desconhecia o porquê do castigo e nem conhecia a palavra sodomia). Estremecimento. Pavor. Horas de tormento.
As chamas subiam e estalavam-se, acompanhadas de um estrondo profundo que não parecia com o ruído provocado durante a queimada da vegetação. Não se sabia a causa. O medo aumentava-se. Meu pai sempre corajoso e ponderado não nos deixou que abandonássemos a casa como nos aconselhavam. Ele não acreditava no que ouvia. A calmaria chegou bem tarde da noite quando o fogo foi se extinguindo. Depois, ao passarmos pelo local do desastre, viam-se vidros de garrafas transformados pelo fogo em formas diversas e soubemos a causa do estampido.
Não houve perdas de pessoas, de documentos e de obras de arte, mas um grande sobressalto angustioso sofreu os que moravam no Entre Morros, principalmente, os que mais perto viviam do lugar do incêndio.
Hoje, num recanto da memória, onde só restam imagens, e o tempo tenha confundido alguns detalhes mencionados do trágico acontecimento, por mim presenciado, deixo aqui um retrospecto da visão do primeiro e doloroso incêndio que presenciei.
* Ester Abreu Vieira de Oliveira professora Emérita – Ufes, membro da Associação de Professores de Espanhol do ES, da Academia Espírito-santense de Letras, da Academia Feminina Espírito-santense de Letras e do Instituto Histórico Geográfico do Espírito Santo.
.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!