Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Sem fazer qualquer análise crítica mais profunda das medidas que constam da agenda econômica do governo Bolsonaro, reportagem da revista Veja, de 31 de julho, projeta o ingresso do Brasil num cenário de prosperidade inigualável em sua história. De acordo com a reportagem, graças à agenda do ministro Paulo Guedes, chamada de Plano Guedes, o PIB per capita brasileiro deve dobrar nos próximos dez anos, o que significa um crescimento médio anual próximo de 10%, o que não ocorreu nem mesmo no período do “milagre econômico” (1967-1973), comandado pelo ministro Delfim Netto há mais de 50 anos. Bom demais para ser verdade para um país aprisionado, desde a década de 1980, na armadilha do baixo crescimento, colocando-o em condições de deixar para trás os “voos de galinha” que têm caracterizado a economia brasileira desde aquela época.
A reportagem não se preocupa em considerar as dificuldades que podem surgir na aprovação dessa medidas e nem em avaliar se as mesmas serão suficientes para remover os gargalos estruturais do crescimento, assim como não leva em conta a influência da economia internacional sobre a economia brasileira, como se o país fosse uma ilha isolada do resto do mundo. Toma-as como certeza e, abstraindo de todas as demais questões, descortina, apenas pela força do pensamento, este futuro grandioso para o país, capaz de contrariar a realidade que hoje impera.
Como a realidade não se move pela força do pensamento, o Banco Central divulgou, no dia 12 de agosto, que o Índice de Atividade Econômica por ele calculado (o IBC-Br) registrou uma queda de 0,13% no segundo trimestre, indicando a possibilidade de a economia brasileira estar novamente ingressando num quadro de recessão técnica, caso essa queda seja confirmada pelo IBGE no final de agosto, considerando que houve um recuo de 0,2% no primeiro trimestre, depois de passar dois anos (2017 e 2018), amargando um processo de estagnação.
Sem o impulso da demanda, cujos principais componentes se encontram prostrados – consumo das famílias, do governo, investimentos – prejudicados pelo já longo período de recessão/estagnação e pela política econômica de austeridade que continua sendo implementada, fica difícil entender como o país conseguirá “virar a chave” e caminhar em direção ao paraíso do crescimento projetado pela revista nessa reportagem. Explica-se a razão.
Uma das medidas nela elencada, a liberação de recursos das contas ativas e inativas do FGTS e do PIS/Pasep, com a qual se estima despejar R$ 42 bilhões na economia até 2020, representa uma “pequena faísca” que pode nem se traduzir em aumento do consumo, dado o elevado nível de endividamento das famílias. Representa, assim, não mais que um “alívio” para as mesmas, mas sem condições de fortalecer este componente da demanda, enfraquecido pelo elevado nível de desemprego e pela queda dos rendimentos do trabalho, incapaz, assim, de alavancar novos investimentos, até mesmo por que a capacidade ociosa da indústria se encontra em níveis consideráveis, em torno de 25%.
Outras medidas, no entanto, a ela se somariam, como as que dizem respeito à redução do compulsório bancário, com o que se irrigaria a economia com mais crédito, e a continuidade de redução da taxa de juros Selic que, além de reduzir os encargos da dívida pública, amortecendo as pressões fiscais, ainda estimularia o consumo e o investimento. Embora sejam medidas que podem, de fato, dar alguma contribuição para este objetivo, não parecem suficientes para alavancar os investimentos, dado o elevado nível de capacidade ociosa na economia e nem, como tudo indica, o estado de confiança do empresariado no futuro do país, em virtude de seus problemas estruturais. Mas, o Plano Guedes, contempla outras iniciativas para reerguer este ânimo, segundo a reportagem.
Parte delas se encontra em um conjunto de reformas para melhorar o ambiente dos negócios e para estimular a oferta: uma reforma tributária centrada na tributação indireta para remover os impostos cumulativos do sistema e diminuir sua complexidade; outra, a da liberdade econômica, com a qual se pretende reduzir a burocracia e a excessiva intervenção do Estado na regulação dos negócios privados, com o objetivo de reduzir o custo-Brasil; e a adoção de medidas para fortalecer o mercado de capitais e garantir fontes de financiamento mais estáveis e baratas para as empresas.
Completam o plano, as medidas voltadas para retirar o Estado da economia e eliminar o déficit público, visando evitar a explosão das contas públicas e saneá-lo financeiramente para deleite do mercado e do capital financeiro. Além da reforma previdenciária que deve gerar uma economia próxima a R$ 1 trilhão nos próximos dez anos, ganhos estimados com a privatização de empresas estatais (Correios, Eletrobrás, Serpro, Dataprev, Casa da Moeda) e a concessão de serviços públicos (estradas, rodovias) alcançariam mais R$ 1 trilhão, cujos recursos deverão ser precipuamente destinados para reduzir o estoque da dívida públicas. Uma reforma administrativa, na qual deverão ser revisados os planos de carreira e extinto o instituto da estabilidade do funcionalismo público, juntamente com a revisão do pacto federativo e a descentralização das políticas públicas, visando obter maior eficiência do gasto público, seriam a garantia de que o Estado reduziria o fardo que hoje representa para a sociedade, podendo abrirem-se espaços, inclusive para a redução da carga tributária.
Do lado do Estado não se pode contar, assim, com nenhum impulso inicial da demanda para reanimar os investimentos e a economia. Pelo contrário. Embora com as medidas propostas e com as já aprovadas – teto dos gastos primários, por exemplo – ele se torne mais “leve” em termos de custos para a sociedade, ao diminuir a rede de proteção social que delas resulta, deve também ocorrer um maior enfraquecimento do consumo das famílias, já que serão prejudicadas as camadas mais pobres da população.
Ora, se os fatores internos de determinação da renda, o consumo (das famílias e do governo) e o investimento, se encontram prostrados, algum impulso teria de vir da demanda externa para garantir que as taxas chinesas de crescimento projetadas pela revista Veja possam ser atingidas nos próximos dez anos. Mas essa, pelas últimas informações da economia internacional não devem contribuir para isso devido aos sinais de que uma nova recessão pode estar a caminho: de um lado, a produção industrial chinesa tem registrado uma desaceleração maior do que a prevista; de outro, a contração da produção na Zona do Euro no mês de junho em relação a maio, de 1,6%, superou as expectativas de uma queda de 1,2%, com o PIB até mesmo da Alemanha registrando um crescimento negativo de 0,1% no segundo trimestre; mesmo nos Estados Unidos, que vinham garantindo oxigênio para a economia mundial com uma taxa de crescimento oscilando entre 2 e 3%, os sinais de uma possível recessão começaram a aparecer: o rendimento dos títulos de Tesouro americano de curto prazo (de 2 anos) foi superior, nessa última semana, ao rendimento dos títulos de longo prazo (10 anos), o que representa, para os analistas, sinais inequívocos da chegada de uma recessão, à medida que os riscos do curto prazo passaram a ser maiores que os de longo prazo; a crise da economia Argentina, importante parceira comercial do Brasil, tem, por sua vez, avançado progressivamente, enfraquecendo sua capacidade de importações.
Tal como retratado na Veja, o Plano Guedes apoia-se no incentivo à oferta (à produção) e no saneamento financeiro do Estado, sem dar muita importância para a questão da demanda, que ocupa lugar passivo nessa equação, tal como ensinam as escolas de economia neoclássica e neoliberal. Caso o empresariado, mesmo enfrentando sérios problemas com a ociosidade de suas fábricas e, sentindo-se beneficiado com a redução dos custos de produção com as medidas contempladas na agenda do ministro, deixe de lado sua preocupação com as expectativas que formam sobre os seus rendimentos futuros e acredite que a força da oferta será capaz de impulsionar a demanda para garantir mercado para os produtos, os prognósticos da revista Veja podem ter alguma chance, ainda que pequena, de se confirmarem. Se isso não ocorrer, provavelmente o país deve continuar mergulhado no processo de recessão/estagnação no qual se encontra desde 2014, e estes prognósticos não passarem de uma nova ilusão que se procurou vender para a população.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.