Por Ester Abreu Vieira de Oliveira*
O dia 29 de outubro é considerado o dia nacional do livro. E, com a mão no queixo como o Pensador de Augusto Rodin, lutando fico com os meus questionamentos de saber como foi esse meu percorrer pelas trilhas literárias da leitura. Quando iniciei essa caminhada? Que benefícios eu recebi de minhas leituras? Contudo, do que me lembro era que cresci ouvindo poemas ou lendo-os, antes mesmo de aprender a ler, porque meu pai levava suas filhas a memorizar poemas que recitávamos em público, em festas cívicas ou para os amigos que em nossa casa iam. Eram poemas de Castro Álvares, Casimiro de Abreu, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Mileto Rizzo que recitavam suas filhas, eu e Estela, mas o filho, Pedro, não. E, quando nem sabia falar direito o folclore brotava de meus lábios e recitava gagamente, como era eu: “Io soiii pepequenaaa de pepena gooossaaa vistido cuto, papapai num gota”, assim me disse minha tia Lurdinha.
Quando consegui aprender a ler, devorei as histórias da carochinha que apanhava emprestado na tipografia de meu tio Líbio e viajava pelas nuvens nos mágicos tapetes e com Aladim.
Iniciática na leitura, eu cruzei a porta de um mundo mágico e dei entrada em outra realidade onde habitavam criaturas perseguidas, amorosas, vingativas, boas e más, belas e feias, que caminhavam por lugares diferentes dos que conhecia e que me revelavam os seus dramas cotidianos. Depois das histórias de príncipes e princesas, de meninos perdidos em enormes florestas, e feitiços que beneficiavam a uns e prejudicavam a outros, passei para algumas histórias bíblicas como a de Sanção e Dalila, Moisés e sua saída pelo Mar Vermelho; Davi e seu filho Absalão (preso com os cabelos nos galhos de uma árvore). Essas histórias se misturavam com as histórias mitológicas lidas em Monteiro Lobato, como as fabulosas façanhas de Hércules e as engraçadas histórias dos contos de Humberto de Campos. Prossegui as minhas leituras nos romances de José de Alencar, iniciando-as com o O tronco do Ipê, que me deliciou com o misterioso crime, com a lenda da Mãe D`Água e com a história dos amores dos protagonistas Mário e Alice e a bondade do preto velho e me estimulou a segui com a leitura de O Guarani, Ti e Cinco minutos, A viuvinha, Lucíola, Diva, A Pata da Gazela, Sonhos d’ouro, e Senhora. A esses romance seguiram a comovente história sobre a escravidão nos Estados Unidos, A cabana do Pai Tomás; sobre a escravidão no Brasil, A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; e sobre a sociedade do século XIX entre outros temas, Menina e moça, de Bernadim Ribeiro, Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, O homem que calculava, de Malba Tahan; Anna Karenina, de Leon Tolstoi. E depois Clarissa, O Senhor Embaixador e Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, e Os três mosqueteiros de Alexandre Dumas e, ainda, na minha adolescência, toda uma série de romances para moças, principalmente os romances de M. Deli, que apanhava emprestado na sacristia da igreja de Muqui, com o sacristão, Seu Antenor, e me deliciava com as histórias de amor entre moças pobres e nobres ricos na Rússia dos Czares. Às vezes até muito tarde da noite ficava entretida na leitura e, então, minha mãe desligava o interruptor central de energia, para que eu fosse dormir.
Não havia livrarias na cidade para se comprar livros. Só as pessoas que viajavam para o Rio, quando voltavam, é que traziam livros que passava de mão em mão.
Meu pai era um exímio recitador. Tinha prodigiosa memória e sua voz ressoava com emoção quando declamava. Lembro-me que todos o admiravam quando o poema de Julio Dantas A CEIA DOS CARDEAIS declamava em nossas reuniões familiares Era um grande entusiasta pela literatura realista. De sua estante pude ler escondida algumas obras, ainda no primário, de Eça de Queiroz (A cidade e as Serra) de Alexandre Herculano (o incompreensível, para mim, pois era o protagonista um proscrito) Eurico o Presbítero. De Émile Zolá (os chocantes romances para minhas descobertas) Nana e Germina; de Julio Ribeiro, A carne, de Álvaro de Azevedo, O Mulato e O retrato de Dorian Grey de Oscar Wilde.
Nesse enveredado caminho das letras impressas, páginas e páginas foram folheadas, deglutidas, arquivadas na minha memória, rejeitadas por ela, sejam em palavras traduzidas ou nos originais de meu alcance (português, francês, espanhol e italiano), mas me permitindo ver a vida com novos olhos.
Agora como la “magdelaine” da narrativa de Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, que proporcionou a Swann, a partir do odor emanado, retornar ao passado, e a aproximação da data do Dia da Leitura fez-me retornar aos meus iniciantes passos na trilha do mundo literário. E eu, como Miguel Páramo, o filho bastardo de Pedro Páramo, que segue em direção à Comala, levado pela mão do escritor Juan Rulfo, vou encontrando belezas, surpresas, tristezas e alegrias nas páginas folheadas por mim, deglutidas e reservadas na parte imaginativa da memória. E por meio das variadas linguagens e sonhos de outros viajei (e viajo) pelas sendas literárias! ... Percorri o Arauco, do século XVII, as terras circundantes do Orenoco, as áridas areias do Saara, os caminhos secos de Castela até o Mar Mediterrâneo, as gélidas terras do Alasca e pude ali ver um céu límpido e estrelado, as veredas de Minas Gerais com Guimarães Rosa, acompanhando as investidas dos jagunços com Riobaldo e Diadorim. Passei sede caminhando pelo agreste nordestino com Rachel de Queiroz, no Quinze, e com Graciliano Ramos em Vidas Secas. Submergi sob a intrincada floresta do Amazonas.
Nos livros convivi com costumes variados, primitivos e exóticos (incas, maias, astecas, chineses, japoneses, indianos, árabes, judaicos e medievais europeus) e participei de aventuras de amor e lutas fantásticas como as enfrentadas por Amadis de Gaule e D. Quixote. Filosofias antigas e modernas (Sócrates, Platão, Aristóteles, Comte, Hegel, Heidegger, Kierkegaard, Sartre, Schopenhauer e Nietzsche) se juntaram às de Saint-Exupéry de O Pequeno Príncipe, mostrando como podemos nos equivocar em nossos julgamentos e como eles podem nos levar à solidão. Os mais entroncados, variados e envolventes estilos narrativos como os de Borges, Saramago, Quevedo, Cortázar, entre outros vários, se empilharam em minhas prateleiras. Séculos diversos passaram (e passam) pelos meus olhos durante a viagem pelos caminhos da literatura. Estilos de época (Idade Média, Renascimento, Barroco, Neoclassicismo, Romantismo, Realismo, Modernismo e contemporaneidade) queimaram (e queimam) as minhas pestanas ao desvendar as suas belezas escondidas.
Como me encantaram e me fizeram sonhar com um mundo mágico e longínquo os intrincados poemas que vinham do mundo de Al-Andalus! Eram os versos das moaxajas, que vinham acompanhadas de um pequeno poema em romance, em uma mestiçagem linguística e cultural da época medieval, a jarcha, que continha um lamento da mulher com caracteres hebreus ou árabes como a do século XII:
bay-se mio qoragon de mib Meu coração palpita
yâ rabbî si se tornarad O meu Deus ¡ Será que ele vai voltar para mim?
tan mal mio doler al-garîb É tão grande a minha dor
enfermo ÿed quan sanarad Que o meu coração está doente
Quando ele vai sarar?
Em um mundo de magia viajei pelos caminhos da Mancha com dom Quixote, pensando em sua amada Dulcineia, junto com seu amigo Sancho, montados em suas respectivas montarias, um gordinho, falador, com uma pança avantajada, e em seu burrinho, e o outro sério, triste e muitas vezes sábio, em seu magro cavalo, o Rocinante. Trafeguei, também, pelos corredores e passadiços de palácios e cheguei à choupana, a túmulos em igreja onde don Juan Tenório pôs término, por castigo divino a suas eróticas aventuras. Certo dia, ao ler os sonetos de Roberto Almada, os dedicados à sua esposa, me emocionei e chorei. Nesse percurso pelas veredas literárias, ouvi várias vozes, escutei o seu coro e me apropriei do que me pareceu dizerem.
Enfim, os textos de gêneros diversos narrativas, teatro e poesia e ensaio foram as pedras grandes, pequenas e médias retiradas dessa vereda literária para torná-la uma reta linha em direção ao conhecimento, à fantasia, ao sonho, à resistência dos percalços da vida.
(1) Parte da publicação deste texto está em Antologia Caminhos Literários no Espírito Santo: Veredas Literárias (Org. Ester Abreu Vieira de Oliveira). Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Vitória: 2012, vol 1 p. 35-44
*Professora Emérita da Ufes, escritora, membro da AEL e da AFESL e do IHGES