Por Fabrício Augusto de Oliveira*
A divulgação do Relatório da ONU no dia 09 de dezembro sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no mundo revela que o Brasil praticamente viu a evolução deste indicador estancar desde 2013, situando-se, em 2018, na 79ª posição entre 189 países pesquisados e caindo uma posição no ranking geral em relação a 2017.
Nada surpreendente, considerando que desde 2014 o país mergulhou num processo de recessão/estagnação, do qual não se sabe quando conseguirá sair, praticamente divorciando-se do crescimento econômico, o qual representa uma das dimensões levadas em conta no cálculo deste índice.
O que mais impressiona nos resultados divulgados é o fato de que o IDH de 0,761, medido pelas dimensões da renda, saúde e educação (quanto mais próximo de 1, menor é a desigualdade existente), ao ser ajustado pelo indicador da desigualdade da renda existente no país, cai para 0,574 e o Brasil despenca 23 posições, passando a ocupar o 102º lugar no ranking geral do universo pesquisado.
A principal causa dessa desigualdade deve-se, como mostra o Relatório, à apropriação de 28,3% de toda a renda gerada no país por 1% da população, considerando dados de 2015. É um dado impressionante e coloca o Brasil no extremo da desigualdade mundial, só perdendo para o Catar, com um índice de 29%, e situando-o distante de outros países também desigualitários, como o Chile (23,7%), país-modelo do pensamento neoliberal, a Turquia e Líbano (23,4%), Emirados Árabes (22,8%) e Iraque (22%).
Em seu livro “O capital no século XXI”, Thomas Piketty considera que o período de maior desigualdade na história do capitalismo foi o que se encerrou com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando, além de contar com uma taxa de crescimento mais modesta, praticamente inexistiam impostos cobrados de forma mais relevante sobre as rendas mais elevadas, os lucros das empresas e o patrimônio. De acordo com os dados que apresenta, neste período de maior desigualdade, o centésimo (1%) da população se apropriava de 20% da renda gerada, enquanto a participação do décimo (10%) chegava a 45-50%.
Os choques econômicos e políticos provocados pelas duas grandes guerras e pelas crises econômicas das décadas de 1920 e 1930 teriam modificado essa situação, com a queima considerável do capital e, já em 1950, a participação do centésimo da população na renda havia sido reduzida para a metade nos países desenvolvidos pesquisados (algo em torno de 10%, portanto) e a do décimo (10%) para 35% a 40%.
A combinação de uma maior taxa de crescimento, especialmente a partir do fim da Segunda Grande Guerra, com a criação e ampliação de impostos progressivos nas estruturas tributárias incidentes sobre a renda e o patrimônio, que nasceram e se fortaleceram com o avanço e consolidação do Estado do bem-estar como rebento dessas tragédias, impediram, pelo menos até o início da década de 1970, que a tragédia da forte desigualdade no capitalismo retornasse aos níveis existentes até a Primeira Guerra Mundial.
A partir, no entanto, da década de 1970, quando o receituário keynesiano entrou em crise, diante de uma inflação em aceleração, combinada com taxas erráticas e menos robustas de crescimento, e as políticas econômicas foram redesenhadas, primeiramente com a contrarrevolução monetarista e, posteriormente, com a corrente do novo consenso macroeconômico, que deslocaram a preocupação com o crescimento econômico e o emprego para o objetivo da estabilidade monetária, as desigualdades voltaram a aumentar aceleradamente. Sem contar com os meios e instrumentos que atuam para impedir/reverter sua trajetória – o crescimento econômico e as políticas redistributivas do Estado – foi inevitável sua expansão: no final da primeira década do século XXI, à exceção de alguns países europeus nos quais o Estado do bem-estar se encontra mais consolidado, a desigualdade praticamente havia retornado aos níveis vigentes antes da Primeira Guerra Mundial, notadamente nos Estados Unidos e Reino Unido, com o centésimo da população se apropriando de 20% da renda gerada e o décimo voltando a abocanhar entre 45% e 50% de seu total.
Para Piketty, a continuidade dessas políticas de austeridade e de anticrescimento defendidas pelo pensamento neoliberal deve agravar este quadro de desigualdades, podendo-se chegar a uma situação em que 30% de toda a renda gerada seja apropriada pelo 1% da população, enquanto os 10% mais ricos passariam a deter cerca de 60%, restando apenas 40% para os 90% restantes da população. Essa situação de extrema desigualdade no sistema poderá colocar em risco a própria sobrevivência e capacidade de reprodução do sistema diante das inevitáveis convulsões sociais que surgirão com o aumento da pobreza de parte considerável da população, o que, só um forte e eficiente aparelho repressivo poderá conter. Por isso, sua proposta de criação de um imposto progressivo cobrado sobre as riquezas acumuladas, o qual complementaria os atualmente esvaziados impostos sobre a renda e o patrimônio.
Se essas previsões do trabalho de Piketty estiverem corretas, o Brasil está prestes a atingir – se não já atingiu – esses limites. Com 28% da renda sendo apropriada pelo centésimo (1%) da população, situação que deve se agravar com as políticas do governo Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, de desmonte do Estado e de abandono das políticas sociais, além de desprezo por políticas tributárias que onerem as camadas mais ricas da sociedade, o Brasil poderá, em pouco tempo, superar até mesmo o Catar neste ranking, e tornar-se o país onde será colocada à prova a resistência do sistema à hecatombe social.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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