Fabrício Augusto de Oliveira*
Contrariando previsões feitas no início de 2019 (inclusive minhas) que apontavam o aumento da relação dívida do setor público consolidado/PIB para a casa dos 80%, um nível temerário para as economias emergentes, o resultado recentemente divulgado pelo governo surpreendeu: tendo atingido o nível de 76,5% em dezembro de 2018, a dívida recuou, em dezembro de 2019, para 75,8%, uma queda de 0,7% do PIB no ano. Sem dúvida um resultado inesperado e bem-vindo para a economia brasileira.
É preciso, no entanto, cautela na análise deste resultado antes de se sentir atraído pelas vozes apologéticas e contagiantes do mercado financeiro que têm atribuído o mesmo à excelência da política econômica, considerando que um ajuste estrutural se encontra em curso e que, muito em breve, a questão fiscal estará resolvida, com o país pronto para retomar a trajetória de crescimento mais sustentado.
A pequena melhoria da situação do endividamento público do Brasil deve-se a uma série de fatores que precisam, inicialmente, ser considerados: 1) a redução do déficit primário do setor público de R$ 108,3 bilhões (1,57% do PIB) em 2018 para R$ 61.9 bilhões (0,86% do PIB) em 2019; 2) queda dos juros da dívida de R$ 379,2 bilhões (5,5% do PIB), em 2018, para R$ 367,3 bilhões (5,06% do PIB), em 2019; 3) queda do déficit nominal, representado pela soma do resultado primário e dos juros da dívida, de R$ 487,4 bilhões (7,09% do PIB) para R$ 429,2 bilhões (5,91% do PIB). O aumento do PIB de 1,1% em 2019, provocando uma expansão do denominador da relação dívida/PIB combinou-se, assim, com a redução dos déficits (primário e nominal) para reduzir a dívida como proporção do produto.
A grande questão para entender melhor essa melhoria consiste em identificar os fatores que contribuíram para a redução dos resultados primário e nominal.
Em relação ao resultado primário deve-se destacar, em primeiro lugar, o crescimento real de 1,6% da arrecadação federal que totalizou R$ 1,537 trilhão explicado, em parte, pelo aquecimento da atividade econômica no ano, mas também, em parte, por fatores não recorrentes, ou seja, que não se repetem, caso da arrecadação extra do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que totalizaram cerca de R$ 14 bilhões, segundo a Receita Federal. Os maiores ganhos de receita vieram, contudo, de outros fatores não recorrentes: 1) da venda, no ano passado, de R$ 137,7 bilhões das reservas externas para conter a alta da moeda americana; 2) da devolução antecipada pelo BNDES ao Tesouro Nacional de R$ 121,7 bilhões de aportes de recursos que foram feitos à instituição no passado, cujos pagamentos foram acordados no governo para realizar o ajuste fiscal. Já no que diz respeito ao resultado nominal, que inclui os juros da dívida, a diminuição da taxa Selic no ano de 6,5% para 4,5% foi o fator mais importante para conter as despesas financeiras, embora o custo da dívida equivalente a 5% do PIB continue entre os mais elevados do mundo e a taxa de juros esteja próxima do limite para permitir a continuidade dessa política.
Em resumo, a não ser pelo aumento da arrecadação explicado pelo crescimento econômico, praticamente a melhoria da dívida pública, como proporção do PIB, deveu-se a fatores não recorrentes, incluindo a receita extra do IRPJ e da CSLL, e à redução da taxa de juros, política que, no entanto, chegou e está próxima de seu limite. Sem a contribuição destes fatores não recorrentes, que não refletem um ajuste estrutural, o Instituto Fiscal Independente (IFI) calcula que a dívida pública teria fechado o ano no patamar recorde de 79%, de acordo com as previsões do início de 2019.
No ajuste fiscal que vem sendo realizado pelo governo desde 2015, primeiro ano da Grande Recessão que se instalou no país, a aprovação da Emenda dos Gastos Primários (EC 95/2016) passou a gerar economia nos gastos públicos desde 2017, quando entrou em vigor, mas essa ainda não se traduziu numa melhoria considerável das contas públicas, embora provocando perdas consideráveis para as políticas sociais, porque enfraquecida pelo pior comportamento das receitas devido à recessão e à estagnação da economia que se seguiu.
A aprovação da reforma da previdência em 2019 deve, por outro lado, gerar mais alguns ganhos para este ajuste, embora tudo indique ainda insuficiente para o setor público começar a equilibrar as contas primárias, a menos que outras fontes de receitas não recorrentes sejam obtidas, o que vai se tornando mais difícil a cada ano. Não se pode, por tudo isso, considerar o recuo da relação dívida/PIB em 2019 como se o país tivesse conseguido realizar um ajuste estrutural de suas contas públicas. Para isso, ainda falta muito.
O fato é que para minimamente equilibrar as contas primárias, o governo precisa de um ganho de cerca de 1% do PIB, o que pode ser obtido com a continuidade da política de austeridade que vem sendo trilhada há cerca de cinco anos, com todas as suas consequências sociais, a qual parece ser a opção do governo, ou com a maior retomada do crescimento econômico, para fortalecer a arrecadação, combinada com uma reforma tributária que inclua os ricos nos custos do ajuste, o melhor caminho a ser buscado que, pelo menos até o momento, sequer tem sido considerado.
As opções estão postas para efetivamente se caminhar para um ajuste estrutural, mas, pelo que tudo indica, o caminho que continuará sendo trilhado será o que causa maior dor e prejuízo para a maior parcela da população brasileira: o da política da austeridade, como sabe muito bem fazer o pensamento neoliberal. Embora necessárias, o conteúdo das propostas de reforma administrativa e do pacto federativo, além da criação de impostos sobre o “pecado” defendidos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, apenas confirmam ser esse o caminho preferido pelo governo.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma Política Social, articulista do Debates em Rede e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação”.