Fabrício Augusto de Oliveira*
Desde 2015, a economia brasileira vem sendo submetida à implementação de políticas de austeridade sob o comando de economistas filiados à ortodoxia, vendidas como necessárias para promover o ajuste fiscal tido como precondição para a retomada do crescimento econômico. De lá para cá, o país amargou três anos de recessão (2014-2016), quando o PIB caiu 8,1%, e três anos de estagnação (2017-2019), período em que se registrou um crescimento médio anual de 1,2%, índice pouco superior ao crescimento da população, o qual deve se repetir em 2020.
Apesar destes resultados, as diversas equipes econômicas filiadas à essa mesma escola, que se alternaram na condução da política econômica ao longo dos últimos seis anos continuam apostando nas políticas de austeridade para tirar o país do atoleiro em que se encontra, uma aposta que é aceita acriticamente por boa parte dos analistas econômicos e também pela mídia, em geral, que apenas encampa e reproduz, sem ousar questioná-las, as análises das autoridades governamentais como verdades definitivas.
O mito que se criou sobre o poder das políticas de austeridade de resolver os problemas do país deve-se, a meu juízo, à interpretação de duas teses equivocadas sobre a dinâmica da economia e dos resultados que se pode colher com a sua implementação.
A primeira se refere ao estudo do economista italiano, Alberto Francesco Alesina, da Universidade de Harvard, que, desde a década de 1990, vem realizando estudos sobre este tema preocupado com o elevado endividamento da Itália. Em 2009, em parceria com Sílvia Ardagna, Alesina escreveu um artigo, no calor dos fortes ajustes exigidos pela crise do subprime nos países europeus, no qual concluíram, de um lado, serem os ajustes realizados pelo corte de gastos superiores aos baseados em aumento das receitas e, de outro, contrariando toda a lógica econômica, existir uma relação direta entre o corte de gastos e a retomada do crescimento econômico, fenômeno que foi chamado de “contração fiscal expansionista”, uma contradição em termos. Mas sem demonstrar convicentemente como isso seria possível.
Embora tal conclusão tenha causado frisson entre os economistas ortodoxos e iludido as autoridades econômicas que viram aumentar os argumentos para reduzir o tamanho do Estado na economia, o que, de acordo com essa tese, beneficiaria a sociedade em geral, a principal conclusão deste trabalho de que o corte dos gastos públicos gera crescimento recebeu ácidas críticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de outros economistas por suas deficiências econométricas e conclusões equivocadas que contrariam o bom senso na economia. Examinando os dados que balizaram essa tese, seus críticos concluíram que os casos por eles estudados já eram expansionistas antes da implementação do ajuste, não podendo, por isso, ser possível atribuir ao mesmo os efeitos do crescimento. Considerando este aspecto, a conclusão foi de que a política de austeridade, ao contrário do que sustentava a tese de Alesina e Ardagna, é contracionista.
Como bom ideólogo, Alesina não se deu, contudo, por vencido na defesa das políticas de austeridade. Juntamente com os economistas Carlos Favero e Francesco Giavazzi publicou, em 2019, o livro Austeridade: quando dá certo e quando não dá, no qual fazem um levantamento de várias experiências de ajuste fiscal e reveem a metodologia para analisar o tema. Sua principal conclusão, em consonância com a lógica da economia, é a de que os ajustes podem ser, de fato, contracionistas, mas que o ajuste pelo lado dos gastos gera menos efeitos perversos que o ajuste pelo lado das receitas, sendo preferível, portanto, a primeira opção, caso necessário sua realização. Se não é possível sustentar a tese de que a contração fiscal produz crescimento, um contrassenso econômico, resta pelo menos a de que em caso de necessidade de ajustes fiscais o melhor caminho a ser percorrido, que acarreta menores prejuízos para a sociedade, é o da redução das despesas do Estado. É este o argumento utilizado pela ortodoxia para cerrar fileiras contra o Estado e priorizar os ajustes realizados para sua redução.
Em sua teoria, Alesina trabalha com as expectativas dos agentes econômicos, embora de forma diferente de Keynes, e mais alinhado com os teóricos das expectativas racionais. Seu argumento é o de que se os déficits continuarem a ser gerados, empresas e consumidores esperarão impostos mais altos no futuro e, para conseguirem pagá-lo, consumirão e investirão menos, atuando como força anticrescimento. Ademais, o aumento do estoque da dívida provocado por esses déficits, termina aumentando os riscos de o governo tornar-se insolvente, acarretando uma elevação das taxas de juros e, consequentemente, aumento nos custos de produção e desestímulo ao investimento e ao consumo.
Nessa visão, a austeridade surge como solução para estes problemas: o corte dos gastos sinaliza menor déficit e impostos mais baixos no futuro, estimulando o consumo e o investimento. Ao conter o déficit e barrar a continuidade do crescimento da dívida, as taxas de juros devem cair, incentivando o aumento do consumo e do investimento e, portanto, do crescimento. Na visão de Alesina e de seus companheiros de estudos de economia, a receita milagrosa para a saída da recessão ou para o crescimento econômico tem um nome claro: austeridade. Nada poderia soar melhor para os ouvidos do pensamento conservador.
Os estudos de Alesina deixam muitas questões sem resposta a respeito dessa questão. Nenhum ajuste é realizado exclusivamente pelo lado dos gastos ou das receitas, embora a participação de uma variável possa ser maior que a da outra, tornando imprecisa a contribuição de ambas neste processo. Reduções de gastos ao provocarem contração econômica tendem a deprimir as receitas públicas, afetando negativamente o ajuste e, consequentemente, enquanto um vai na direção pretendida (os gastos), as receitas seguem em direção contrária, neutralizando ou podendo mais que neutralizar os efeitos da primeira. Os efeitos dos cortes de gastos na atividade econômica são diferenciados, sabendo-se que os cortes nos investimentos públicos, por exemplo, geram efeitos contracionistas muito mais expressivos que nos gastos correntes.
No curso de um ajuste, caso se perceba que a meta estabelecida não será alcançada, geralmente acionam-se outras medidas que não, necessariamente, compunham o cardápio inicial, modificando sua estrutura. Ou seja, há uma série de dificuldades para avaliar e mensurar a contribuição tanto dos gastos como das receitas para a obtenção dos resultados alcançados em um processo de ajuste. Isso, no entanto, não tem a menor importância para a ortodoxia, cuja preferência é sempre pelo corte de gastos e pela redução e esvaziamento do papel do Estado na vida econômica e social. A preferência pelo corte dos gastos, dadas as dificuldades apontadas para, estatisticamente, estabelecer a maior eficiência dos mesmos vis-à-vis os impostos, deve-se ao fato de que com o primeiro estanca-se o crescimento das despesas com o Estado do bem-estar, enquanto com o segundo isso não ocorre. Neste caso, ao deixarem-se guiar pela ideologia, estes autores contaminam os estudos dos fenômenos econômicos.
A segunda tese é a de que realizado o ajuste, os investimentos retornarão naturalmente e, com eles, o crescimento econômico, devido à melhoria que ocorre nas expectativas dos agentes econômicos sobre o futuro da economia e sobre a capacidade do governo de honrar seus compromissos financeiros. Embora a situação financeira do governo tenha influência na formação das expectativas empresariais, já que pode afetar importantes variáveis macroeconômicas no futuro – impostos, inflação, taxa de juros, câmbio, por exemplo -, essa é uma visão bastante limitada sobre os fatores que as influenciam.
A formação das expectativas dos investidores ocorre num cenário de incertezas sobre o futuro e sua decisão sobre os investimentos que vai realizar depende do estado de confiança que têm não somente sobre o comportamento das variáveis macroeconômicas, mas também e principalmente de seus negócios. Embora a situação das finanças do governo possa ter alguma influência sobre essas expectativas, elas não são as mais relevantes para o investidor. Este leva em conta, na verdade, em primeiro lugar, neste processo de avaliação – e os projeta para o futuro – mais os rendimentos que pode obter com a produção de sua empresa, bem como os custos em que incorrerá para avaliar a taxa de retorno dos recursos que vai empregar, visando obter elementos para decidir se vale a pena investir. Se não há confiança, nessa avaliação, de que encontrará mercados – interno e/ou externo – para os seus produtos e de que os seus custos poderão permitir-lhe ser competitivo com outras empresas – nacionais e estrangeiras – o empresário dificilmente irá à frente com os investimentos, independentemente da situação financeira do governo. Este pode até estar desfrutando de uma condição financeira confortável, com geração de superávits e baixo nível de endividamento, mas isso não será suficiente para animar o empresário a investir se este enxergar riscos, de acordo com suas expectativas, para os seus negócios.
Por isso, a fórmula proposta por Keynes para a saída da recessão é oposta à de Alesina & Cia. A decisão dos empresários de investir e criar empregos depende de sua renda esperada que, por sua vez, depende do aumento do emprego e da renda. As políticas de austeridade, por meio do corte de gastos e/ou amento de impostos enfraquece ainda mais a demanda agregada, reduzindo os rendimentos esperados das empresas, aprofundando a recessão. Nessa situação não há estímulos para o investimento e a retomada do crescimento. Contrariamente, um aumento dos gastos do governo e/ou uma redução dos impostos gera aumentos do emprego e da renda, melhorando as expectativas sobre o tamanho do mercado para as empresas venderem sua produção, alimentando as forças da recuperação e a saída da crise, com expansão da arrecadação.
A de Alesina & Cia. segue o mesmo script das teorias exóticas nascidas a partir da década de 1970 com a contrarrevolução monetarista, as quais voltaram a ignorar o poder da demanda para o crescimento econômico, com este perdendo importância na equação da prosperidade em favor da estabilidade macroeconômica e da defesa do capital e da riqueza em geral num capitalismo crescentemente financeirizado.
Vendidas como se não houvesse alternativa fora de seus dogmas têm embalado as políticas econômicas que passaram a ser implementadas desde essa época, sacrificando o crescimento e o emprego para proteger essa riqueza e garantir que o Estado preserve seus interesses no orçamento, dele expulsando os compromissos com o Estado do bem-estar.
No caso específico do Brasil, país onde este peixe vem sendo vendido desde 2015, o que o tem levado a andar para trás, todas essas condições são adversas para a retomada dos investimentos. Em primeiro lugar, porque a indústria de transformação opera com uma capacidade ociosa de cerca de 25%. Em segundo, por não existirem perspectivas favoráveis para uma recuperação mais forte do consumo tanto das famílias como do governo. O primeiro, devido ao elevado nível de desemprego, com 25% da população economicamente ativa desocupada ou subutilizada e com boa parte da população (mais de 60%) endividada. O segundo, em decorrência do ajuste fiscal que vem sendo implementado pelos gestores da política econômica. Em terceiro, por ser elevado o custo-Brasil em função da alta carga tributária, da precária – e cara – infraestrutura econômica, das ainda altas taxas de juros em relação a outros países e de um câmbio altamente volátil.
Nessas condições, só a aprovação das reformas para equacionar ou pelo menos reduzir o desequilíbrio fiscal do governo não será suficiente para despertar o animal spirit dos investidores, propiciando a reaceleração da economia brasileira, como tem insistentemente repetido, como mantra, o ministro da Economia, Paulo Guedes, para angariar apoio de setores importantes, inclusive do Congresso, para seu avanço.
Não admira, assim, que Guedes, adepto das políticas neoliberais, não tenha, passado mais de um ano à frente do ministério da Economia, apresentado qualquer plano voltado para o crescimento econômico, condicionando sua retomada à realização das reformas que considera necessárias para o ajuste fiscal. Da forma como vêm sendo implementadas, trata-se de reformas que, pelo seu conteúdo, apenas seguem a cartilha elaborada por essas escolas para garantir que os cortes de gastos sejam profundos o suficiente para abrir espaços no orçamento, visando acomodar os interesses da riqueza financeira, pouco tendo a ver com a preocupação de, pelo menos, permitir ao Estado recuperar minimamente sua capacidade de investimento para remover um dos principais gargalos da economia brasileira. Se, de fato, existisse a preocupação com o crescimento econômico, as reformas não somente teriam outro desenho, em especial a tributária, procurando-se lançar o maior ônus da tributação sobre os mais ricos, como estariam acopladas, como instrumentos, a um plano consistente de desenvolvimento para nortear e orientar as ações dos agentes econômicos, o que inexiste. Por isso, pela força anticrescimento que representam, como políticas de austeridade, o Brasil deve permanecer na trajetória do processo de estagnação, podendo até mesmo retroceder, dado o cenário externo crescentemente desfavorável.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Socia, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento do inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
Foto: baixada de https://www.bimag.it/management/alesina-manager-economia-austerity_453562/