Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Além dos estragos provocados na economia e na sociedade, a crise do subprime (2007-2009) estimulou a revisão de algumas teorias do pensamento ortodoxo e deu origem a novas, construídas para explicar a natureza e a melhor forma de enfrentar a situação da Grande Recessão gerada. A principal preocupação dessa revisão foi a de explicar o papel do capital financeiro na dinâmica do crescimento e de sua interação com as variáveis reais – renda, emprego, investimentos -.
Foi somente em virtude da magnitude dos efeitos negativos daquela crise sobre os níveis da atividade econômica e do desemprego, principalmente nos países mais afetados, que os economistas da escola de pensamento ortodoxo admitiram em seus modelos teóricos, ainda que à contragosto, as fricções financeiras como capazes de impactos macroeconômicos significativos. Antes algo inaceitável nos argumentos utilizados na defesa da liberdade plena e absoluta do capital financeiro.
Entre as novas teorias, procurando sugerir medidas para superar quadros de recessão ou de baixo crescimento, figura a do economista italiano Alberto Alesina que concluiu, a partir da análise dos ajustes realizados, serem as políticas de austeridade o melhor caminho para a saída da crise, podendo até provocar expansão econômica, fenômeno que foi chamado de “contração fiscal expansionista”, uma contradição em termos.
Criticado até pelo FMI e por vários economistas que demonstraram a tortura dos dados praticada por Alesina para chegar às suas conclusões, ele terminou contentando-se com a defesa de ser a política de corte de gastos superior a de aumento dos impostos. Mas com sua demonstração permanecendo inconvincente em razão da complexidade de um ajuste fiscal. Apesar disso, sua proposição continuou orientando as políticas de ajuste fiscal em vários países. Foi importante para o pensamento ortodoxo porque com o corte de gastos garante-se a expulsão das políticas sociais do orçamento do Estado, enquanto o aumento dos impostos pode até expandi-las, caso exista vinculação dessas despesas em lei ou na Constituição.
Na contramão da teoria da austeridade, a Moderna Teoria da Moeda, identificada como uma nova – e renascida – visão keynesiana sobre essa mesma questão, foi colocada no palco dos debates acadêmicos como alternativa à saída da crise, tendo como principal protagonista exatamente o Estado, agente execrado pelo pensamento ortodoxo como a “encarnação do mal”.
Como analisa Randall Wray, a Moderna Teoria da Moeda não é nova, mas sempre foi ignorada pelo pensamento econômico dominante por que sua aceitação implicaria a demolição de uma das vigas mais importantes de seu arcabouço teórico: a teoria quantitativa da moeda (TQM), com a qual aprisiona a ação do Estado com a demonstração de que seus gastos excessivos, seguidos de expansão monetária, provocam inflação e instabilidade na economia. Por isso, ser necessário contê-lo rigorosamente dentro de certos limites.
No Brasil, foi principalmente o artigo de André Lara Resende, intitulado A crise da macroeconomia (Valor Econômico, 08/03/2019) , que despertou o interesse e a atenção pela nova forma de encarar o papel da moeda e, com ela, o papel do Estado, dos déficits e da dívida pública e de suas intervenções na economia.
Ainda que essas teses sobre a Moderna Teoria da Moeda já estivessem circulando há bem mais tempo, o fato é que se encontravam confinadas nos porões do mundo acadêmico, especialmente dos Estados Unidos, de certa forma vetadas pelo saber convencional, que as vê como uma ameaça à teoria macroeconômica ortodoxa. Coube a Lara Resende o mérito de divulgá-las no Brasil e dar destaque à política fiscal como instrumento poderoso que pode ser manejado pelo Estado para os objetivos do crescimento.
De fato, no livro publicado no Brasil em 2003, com o título Trabalho e Moeda hoje: a chave para o pleno emprego e a estabilidade dos preços (1998), Wray apresenta, no capítulo 2, a trajetória histórica da visão cartalista da moeda, um termo que pode ser entendido como dinheiro-papel ou, como ele a chama, de “moeda guiada por tributos” que embasa a Moderna Teoria da Moeda.
Wray parte da análise de Adam Smith sobre a moeda, passando pelos trabalhos de George Friedrich Knapp do início do século XX, pelo Tratado da Moeda de Keynes, de 1930 e pelas visões, entre outros, de Abba Lerner, Schumpeter, Minsky, para sustentar, de um lado, a tese de que a função mais importante da moeda é a de servir de unidade de conta, de medida de valores, com a qual se registram débitos e créditos, e não propriamente, como pensam os quantitativistas, de meio de troca; e, de outro, de sua endogeneidade, à medida que responde à demanda do público, e não como variável exógena cujo estoque é controlado pela autoridade monetária.
Na abordagem cartalista, considera-se essencialmente como moeda, o instrumento ou meio que o Estado aceita como pagamento dos tributos que recolhe, legitimando-a e criando demanda para a mesma pela necessidade de pagamento destes tributos. Na prática, a transforma em referência na qual se expressam os preços e os contratos da economia. É o Estado, portanto, o criador da moeda, o seu senhor, legitimando-a enquanto referência geral como unidade de conta e de valores da economia e, por decorrência, como meio de troca e reserva de valor.
O Estado introduz a moeda no sistema por meio de suas compras, tornando-a uma unidade de crédito contra ele, como argumenta Lara Resende, ou seja, uma unidade de dívida do Estado, que é legalmente aceita para o pagamento de impostos. Isso a torna indissociável da cobrança de tributos.
De outro lado, o sistema bancário, ao expandir seus empréstimos provoca também aumento das reservas bancárias (a base monetária). Mas, se ocorrer excesso de empréstimos, pode surgir formação de bolhas, com a valorização exagerada dos ativos, seguida de desvalorizações quando aquelas se rompem, originando graves crises financeiras num quadro de contração do crédito. Diferentemente, o governo não esbarra nessa restrição, podendo sempre emitir para se financiar, o que, como argumenta, nada mais significa que aumentar o valor do passivo contábil do banco central.
Dessa forma, o Estado está livre das restrições financeiras porque pode efetuar as suas compras, pagar seus funcionários, realizar investimentos simplesmente emitindo dinheiro, sem preocupação com financiamento, como fazem os agentes privados.
Essa não é, contudo, uma boa ideia para os militantes da escola ortodoxa. Ao considerarem a moeda essencialmente como meio de troca, um estoque que circula a uma determinada velocidade-renda para comprar o produto a um certo patamar de preços. Isso implica que a causalidade do circuito monetário vai da moeda para a demanda agregada e, se ela, a moeda, for excessiva, é inevitável a inflação para ajustar o sistema. De acordo com Lara Resende, no cartalismo o sentido da causalidade é o inverso, não da moeda para a demanda agregada, mas dessa, seja pública ou privada, para a moeda. Ou seja, por ser endógena, a quantidade de moeda apenas responde aos movimentos da demanda agregada, que pode exigir tanto sua expansão como contração.
A verdade é que tanto os fatos quanto a evolução dos debates e pesquisas, na revisão teórica que começou a ser feita, vinham colocando em xeque os dogmas do pensamento convencional e, ao mesmo tempo, gerando novas propostas teóricas acompanhadas de diretrizes bem distintas para as políticas do governo. Este é o tema que será tratado na parte 2 deste artigo, completando este estudo sobre a Moderna Teoria da Moeda e os problemas do crescimento econômico.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”
Foto: baixada da internet https://bandnewsfmrio.com.br/editorias-detalhes/criador-da-teoria-moderna-da-moeda-participa/