Por Fabrício Augusto de Oliveira*
No artigo anterior (Ortodoxia em Xeque: caminhando para uma nova Teoria Moderna da Moeda (1), Debates em Rede, 26/03/2020) descrevemos com suporte no artigo de André Lara Resende intitulado, A crise da macroeconomia (Valor Econômico, 08/03/2019), a revisão teórica que começou a ser feita por alguns autores a respeito do papel da moeda e de seus efeitos sobre a inflação e a atividade econômica. Agora pretendemos, seguindo na mesma linha e com os mesmos apoios bibliográficos discorrer sobre as implicações dessa revisão para as políticas do governo – monetária e fiscal – e para a economia.
Passado o encantamento com a política monetária de Friedman com seu helicóptero despejando moeda na economia, a própria ortodoxia começou a questionar a capacidade da autoridade monetária de controlar a oferta de moeda e a removeu definitivamente de seus modelos na década de 1990. Nesta trajetória, introduziu a taxa de juros como instrumento de controle da demanda agregada para evitar tensões inflacionárias. Para Lara Resende, o reconhecimento de que não é bem a oferta de moeda que provoca inflação, mas a demanda agregada, que pode ser administrada pela política de juros: quando a inflação se manifesta devido a um excesso de demanda, a autoridade monetária deve elevar a taxa de juros para desestimular o consumo e o investimento; e quando deprimida, com o produto efetivo se situando abaixo do produto potencial, deve diminuí-la para injetar forças na demanda e conduzir a economia para o ponto de equilíbrio do produto potencial.
Além do excesso de demanda agregada, a inflação pode aparecer devido as expectativas dos agentes econômicos de que os preços aumentarão. Um choque negativo, cambial, por exemplo, que pressiona preços-chave da economia pode despertar nos agentes tal percepção, garantindo uma trajetória ascendente para os preços. Essas expectativas de inflação podem, no entanto, ser revertidas por um banco central que estabelece a meta de inflação para um determinado período (um ou dois anos) e maneja a taxa de juros para garantir que a mesma seja atingida.
Para Lara Resende, a melhor comprovação prática de que a expansão da moeda não provoca inflação deu-se, mais recentemente, na crise do subprime e da dívida soberana europeia. Para retirar o sistema da crise, os bancos centrais, principalmente dos países desenvolvidos aumentaram, numa grandeza nunca vista, as reservas bancárias para comprar ativos do sistema financeiro, sem que a inflação tenha saído de controle, mantendo-se abaixo da meta nestes países. Aliás, em alguns países europeus verificou-se que o nível de preços ameaçou ingressar numa trajetória deflacionária, devido à fraqueza da demanda agregada.
Ora, se a emissão de moeda não é a causa da inflação, como considera a teoria econômica ortodoxa, o governo não tem restrições financeiras para gastar ou financiar uma política de desenvolvimento, podendo expandir seus desembolsos sempre e quando desejar, independentemente de contar com recursos dos impostos ou de outra fonte. Na realidade, contudo, as coisas não são bem assim.
Existe, como ele argumenta, a restrição da realidade que é dada pela capacidade produtiva da economia. Como o gasto do governo faz parte da demanda agregada, seu aumento pressiona essa capacidade, podendo provocar inflação, mas não pela emissão de moeda e sim pela sobrecarga de seus gastos.
No caso de uma economia aberta a situação é bastante diferente para os países que não emitem moeda-reserva. A sobrecarga de gastos sobre a capacidade produtiva pode também provocar déficits externos, com o aumento das importações e da dívida externa, a qual, em algum momento pode encontrar dificuldades para ser refinanciada, conduzindo o país a graves crises. Neste caso, ao contrário do que ocorre com o financiamento dos gastos do governo em moeda nacional, para a qual existe apenas a restrição da capacidade de produção, no caso da dívida externa é clara a restrição financeira, já que o país não emite moeda de reserva e necessita obtê-la para pagar seus compromissos.
Daí conclui-se que os impostos são criados não para o governo obter dinheiro, mas para retirar poder aquisitivo do setor privado e abrir espaço para aumentar os seus gastos sem pressionar a capacidade produtiva. O limite de seus gastos com financiamento em moeda nacional é, portanto, a capacidade de produção.
O problema de aumentar a dívida, na visão tradicional, reside no seu custo fiscal e na transferência de seu fardo para as gerações futuras. Isso porque o governo paga juros seja sobre as reservas bancárias retidas no banco central, seja sobre os títulos públicos que coloca no mercado. Caso a taxa de juros (i) que paga seja maior que a taxa de crescimento da economia (g) a dívida inevitavelmente crescerá e, além de gerar expectativas desfavoráveis sobre a capacidade de solvência do governo, seu custo será transferido para as gerações futuras, já que o governo terá de cobrar impostos adicionais para pagá-la (o custo fiscal), enquanto a geração presente conhecerá uma melhoria do bem-estar, o que seria injusto.
Não há, na verdade, nenhuma novidade e nem necessidade de modelos sofisticados para demonstrar que se i < g, a dívida como proporção do PIB tenderá a decrescer, diminuindo o custo fiscal e aumentando o bem-estar. Mais importante nessa argumentação é o fato de que o governo é quem dispõe dos instrumentos para fixar a taxa de juros, estando ao seu alcance as condições para evitar que o fardo de seu custo seja transferido para as gerações futuras.
Como ele argumenta: o banco central não controla e nem tem como controlar as reservas bancárias – a base monetária – mas pode definir e controlar a taxa de juros para neutralizar os efeitos da moeda sobre a demanda agregada, que é o necessário para administrar e garantir a meta estabelecida para a inflação, que não resulta do aumento da oferta de moeda, e também para impedir que a dívida se torne um problema para a estabilidade da economia e para as gerações futuras, desde que a fixe num patamar inferior à da taxa de crescimento do produto.
Sintetizando seu argumento que decorre da Moderna Teoria da Moeda: o governo não está sujeito à restrição financeira, mas a uma restrição real, dada pela capacidade de produção, e nem a dívida representa um fardo (um custo fiscal) para as gerações futura, desde que i < g. E o banco central dispõe de todas as condições para isso se abandonar a sabedoria ortodoxa e considerar que não é a oferta de moeda que causa inflação, mas a demanda agregada, tal como defende a Moderna Teoria da Moeda. Explica-se a razão
A taxa básica de juros por ele estabelecida, a Selic no Brasil, é a que remunera as reservas bancárias. Até os dias atuais, o Governo, submetido à visão ortodoxa e supostamente para assegurar seu financiamento, emite títulos da dívida pública oferecendo retorno acima das taxas de mercado para torná-los atraentes. Logo, o custo do seu passivo total é bem mais elevado do que se fosse feito pela taxa básica. Para ele, isso é totalmente desnecessário, sabendo-se que o governo pode financiar a integralidade de seu passivo com a emissão de reservas bancárias, sem provocar inflação.
Os argumentos contrários à capacidade do banco central de fixar uma taxa de juros inferior à taxa de crescimento são os seguintes: 1) a taxa de juros incorpora prêmios de liquidez, impedindo que isso ocorra. Mas, para ele, tal conclusão é um equívoco conceitual que nasce de um consenso entre os investidores sobre o papel da política monetária no controle da demanda, além de exagerem nestes riscos para obterem maiores ganhos, influenciando as decisões do banco central; 2) como a taxa de juros deve ser ajustada para estimular ou desestimular a demanda agregada, o banco central não dispõe, na prática, de autonomia para fixá-la, o que é verdade, mas isso resulta de um equívoco de atribuir à política monetária um poder que ela não tem.
De acordo com a tese cartalista, incorporada à Moderna Teoria da Moeda, as políticas monetária e fiscal não são independentes, e se a demanda agregada está pressionando a capacidade de produção, o correto é implementar uma política fiscal contracionista, cortando gastos ou aumentando os impostos, enquanto se mantém a taxa de juros num nível capaz de estimular o investimento e o crescimento, de forma que, a longo prazo, haja uma convergência da taxa de crescimento com a taxa natural de juros, ao aumentar a relação capital/trabalho. Com isso, a dívida pública se tornará sustentável, podendo sempre ser carregada sem aumento de impostos, desde que o déficit público primário não seja permanente.
Disso decorre que em economias com capacidade ociosa, o aumento dos gastos do governo financiado por aumento da base monetária/reservas bancárias representa a estratégia mais eficiente para retirar a economia do atoleiro em que se encontra, sem causar inflação, pelo menos até o ponto em que não pressiona os limites da capacidade produtiva. Isso porque se é verdade que a política monetária pode ser acionada para evitar uma depressão, injetando liquidez na economia, como aconteceu na crise do subprime, apenas a política fiscal pode levar à recuperação, por meio dos gastos do governo, que não precisa, nessa situação, nem de tributar, nem de procurar outra fonte de financiamento como ocorre com os agentes privados, para gastar, mas apenas emitir moeda sem pressionar os preços, como acredita a ortodoxia, mantendo baixa a taxa de juros para estimular os investimentos e o crescimento.
O equívoco do consenso macroeconômico está no fato de atribuir exclusivamente à política monetária, mais especificamente à taxa de juros, o poder de controlar a demanda agregada como condição para manter a inflação dentro da meta estabelecida, mesmo quando ela persiste num quadro econômico de capacidade ociosa e elevado nível de desemprego, explicada por expectativas negativas provocadas por algum choque – interno ou externo -, cujas causas são insensíveis a estes movimentos dos juros. Para o consenso, no entanto, não há alternativa fora do aumento dos juros, o que leva à expansão da dívida e do custo fiscal para a sociedade, asfixiando ainda mais o crescimento econômico. Ao que se sobrepõe a defesa apaixonada das políticas de austeridade para conter os desequilíbrios fiscais do Estado, tidos como responsáveis por essa situação, mesmo num quadro de crescente insuficiência da demanda agregada. Não pode dar certo, porque só piora a situação.
Não é preciso muita perspicácia para entender que tal visão desagradou, de uma maneira geral, não somente os economistas filiados aos dogmas da ortodoxia, mas também os que, mesmo não sendo integrantes de seus quadros, passaram a acreditar na fórmula milagrosa do consenso sobre o poder da taxa de juros para controlar a inflação, a qual, ao fim e ao cabo, termina beneficiando a riqueza financeira.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”
Foto: baixada da internet https://vermelho.org.br/2016/08/19/a-miseria-da-ortodoxia/
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