A gravidade da crise do coronavírus, bem como os estragos que a mesma poderia produzir na economia, na saúde e na vida material da população, com a perda de emprego e renda, foi recebida, no Brasil, ao contrário do que ocorria praticamente em todo o planeta, com uma atitude altamente negacionista por parte dos dois principais comandantes do país: o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
De olho no seu futuro político, Bolsonaro percebeu que se a economia afundar, tal como indicavam as primeiras projeções sobre o PIB feitas por organismos e instituições de pesquisas, nacionais e internacionais, provocando aumento de um desemprego já elevado, suas chances de reeleição se estreitariam consideravelmente. Por isso, procurou, desde o início da crise, sem abrir mão dessa posição, mesmo com o mundo correndo em direção contrária, contando os mortos, minimizar seus efeitos, classificando o que viria a ser considerado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma “gripezinha”, assim como a adoção de medidas de isolamento social e a suspensão de várias atividades econômicas determinadas por governadores e prefeitos, à sua revelia, de “histeria”.
Procurando vender a imagem de que, apesar de preocupado com a saúde do brasileiro, cabia-lhe também a responsabilidade de garantir-lhe as condições para se sustentar, por meio do emprego, investiu contra as recomendação da OMS e do próprio Ministério da Saúde (MS) de confinamento da população para conter a disseminação do vírus, e abriu uma batalha contra os governadores e prefeitos, que insistiam em manter a estratégia do isolamento e da interrupção das atividades produtivas, à exceção das consideradas essenciais – transportes, farmácias, postos de gasolina supermercados, dentre outras.
Nessa jornada, não se cansou de plantar inverdades (fake news) sobre a dimensão e gravidade da doença e de negar o conhecimento científico. Da mera “gripezinha”, como a ela se referiu, passou a defender que a mesma só atingia pessoas mais idosas, dela estando protegidos os mais jovens e principalmente os atletas, não se justificando a medida de isolamento horizontal, que vinha sendo recomendado (para toda a população), mas apenas, se fosse o caso, o vertical (para velhos e aposentados), mesmo diante da evidência de que muitas vidas do primeiro grupo começavam a ser ceifadas no mundo e de que seus membros, muitas vezes por serem assintomáticos, eram seus principais transmissores.
Relutante em sua posição de priorizar a economia e de dar preferência à contagem de mortos, por objetivos eleitorais, passou a editar decretos para o retorno ao trabalho de algumas atividades, os quais, no entanto, foram sendo anulados na justiça e, com isso, foi vendo gradativamente engrossar a oposição de vários setores da sociedade às suas diatribes e insensatez, caso do Legislativo, do Judiciário, do Supremo Tribunal Federal, da população que passou a contestar suas falas por meio de panelaços diários e até mesmo de seus apoiadores nas redes sociais, que passaram a encolher.
Crescentemente isolado, inclusive no cenário mundial com essas atitudes insanas, Bolsonaro, do alto de sua ignorância, que deixou para trás o homem de Neandertal, e proibido pela justiça de contrariar as recomendações da OMS, continuou insistindo veladamente em suas posições e dificultando, com o poder que detém, a liberação de recursos dos projetos aprovados no Legislativo, principalmente para as necessidades de renda dos trabalhadores e da população mais vulnerável, visando forçar seu retorno ao trabalho, numa confirmação de total despreparo para um cargo de tal envergadura e importância. Até mesmo o Twitter, o Facebook e o Instagram começaram a remover suas mensagens diários em seus sites sobre os temas da saúde, limitando consideravelmente sua comunicação com seus fanáticos apoiadores.
Paulo Guedes, por sua vez, um economista filiado à corrente neoliberal, que havia passado mais de um ano sonhando com o ajuste das contas públicas, desdenhou, desde o início, a gravidade da crise que se avizinhava, e aproveitou sua chegada para pressionar o Congresso a aprovar as reformas do Estado ainda pendentes – tributária, administrativa, emergencial -, vendendo a ideia de que, com elas, seria mais fácil vencê-la. Por isso adiou, enquanto pôde, a adoção de medidas para combatê-la, temendo colocar por água abaixo as (pequenas) conquistas que obtivera nessa empreitada. Terminou tendo de se render à mesma, quando seus efeitos se manifestaram com maior força, mas sua reação foi tímida frente aos desafios colocados diante dos maiores desajustes que as medidas que deveriam ser adotadas provocariam para as contas públicas.
Tendo começado a priorizar as necessidades de liquidez e de crédito para a economia e as empresas, viu-se obrigado a abrir frentes de gastos para atender as necessidades de renda dos trabalhadores informais e da população mais vulnerável e também dos trabalhadores formais, dada a suspensão de muitas atividades econômicas, e também das empresas mais afetadas com a crise, especialmente as de médio e pequeno porte e também de grande porte, como as aéreas.
Para não ver ruir de vez seu sonho de realizar um ajuste fiscal que poderia colocá-lo no topo dos economistas neoliberais, foi parcimonioso nas medidas de proteção dos trabalhadores, mas terminou sendo contrariado no Congresso Nacional. Com um projeto inicial de auxílio dos trabalhadores informais de R$ 200,00 por três meses, que custaria estimativamente R$ 15 bilhões para o governo, viu este auxílio ser aumentado para R$ 600,00 na sua votação, e seu custo triplicar para R$ 45 bilhões. Nada mais decepcionante para quem, a contragosto, já concordara em aumenta-lo para R$ 300,00 nas negociações realizadas com o relator do projeto na Câmara dos Deputados.
Em relação aos trabalhadores formais, procurou, por meio de um decreto assinado pelo presidente Bolsonaro, jogar todo o ônus causado pelo desemprego sobre seus ombros, autorizando às empresas cancelar seus contratos por quatro meses, sem a obrigatoriedade de pagar salários, garantindo apenas, a eles, os demais direitos trabalhistas. Não deu certo. Diante da reação de vários setores à medida, que deixava desamparados os trabalhos numa grave crise de incerta duração, teve de recuar e atribuir a medida a um “erro” de redação, o que não era bem verdade, e sujeitar-se a apresentar uma nova proposta para essa questão, que contemplasse alguma garantia de emprego e renda para o trabalhador formal, com o governo tendo de abrir os cofres para ajudar as empresas a pagar os salários. Não era bem o que pretendia.
Embora ao nível do discurso, Paulo Guedes tenha ajustado suas posições à necessidade de salvar vidas e empresas e garantir alguma renda para os trabalhadores, de olho no equilíbrio entre saúde, economia e contas públicas, deu um jeito de ir postergando a execução dos projetos aprovados de salvamento, principalmente dos trabalhadores e da população vulnerável.
No caso do auxílio emergencial passou a cobrar do Congresso a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para liberar os recursos e não ser enquadrado em crime de responsabilidade fiscal por desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO), quando o próprio STF já havia determinado, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, que os gastos emergenciais gerados com a crise não entrariam nessa contabilidade.
Em relação aos trabalhadores formais, o projeto de ajuda do governo às empresas para o pagamento de salários permaneceu parado no ministério da Economia por um bom tempo, provocando incertezas sobre o seu alcance, sobre a capacidade das empresas de pagar a parcela de sua responsabilidade dos salários e dos trabalhadores sobre o emprego e sobre o nível de renda com que poderiam contar.
Se esses atos protelatórios das medidas, bem como de sua execução contribuíam para o objetivo de reduzir, ainda que por um período, os gastos do governo para o combate à crise e, consequentemente, o rombo fiscal esperado, certo é que colocavam em crescentes dificuldades a população que desesperadamente necessitava de dinheiro para sobreviver. O que desencadeou uma campanha no país que contou com a adesão inclusive do ministro do STF, Gilmar Mendes, com a hashtag “#PagaLogo”. Uma lástima.
O fato é que nem Bolsonaro nem Paulo Guedes mostraram-se à altura dos cargos que ocupam para enfrentar os desafios da crise do coronavírus. O primeiro, por motivos eleitorais, continua não medindo esforços para furar o cerco montado para impedir a transmissão do vírus, ameaçando baixar decretos para garantir o retorno ao trabalho. Mas, se ousar ir à frente com essa estratégia, corre o risco de ter suas ações tolhidas na justiça e de dar-se conta que perdeu, de vez, a autoridade de presidente. O segundo, se continuar sentado no caixa para salvar o improvável projeto de ajuste fiscal, pode ver a recessão avançar mais rapidamente e levá-lo definitivamente ao naufrágio com o maior empilhamento de mortos.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação”.
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