Fabrício Augusto de Oliveira *
Sem qualquer ideologia, o Sars-Conv-2, causador da doença Covid-19, conseguiu a proeza de fazer com que os economistas, incluindo os da ala ortodoxa, passassem a falar a mesma linguagem e a apontarem o Estado como o único agente em condições de adotar medidas para salvar vidas humanas e evitar o colapso total da atividade econômica. Para isso, partindo de escolas tão divergentes do pensamento econômico, a ordem transmitida tem sido a de esquecer os compromissos com a disciplina fiscal e envidar todos os esforços possíveis, até mesmo emitindo moeda, se necessário, para enfrentar este desafio, algo impensável, para o mainstream, no período de maior normalidade do funcionamento do sistema.
Para os economistas dessa escola, mesmo com a discordância, entre eles, de alguns pontos sobre a supressão ou não do teto dos gastos estabelecido pela EC 95/2016, a preocupação com o ajuste fiscal deve ser deixada de lado, transferindo seu enfrentamento para o futuro. Isso porque, somente o governo disporia de condições, seja lançando mão de créditos extraordinários, de aumento da dívida ou mesmo da emissão de moeda, para enfrentar a situação, devendo dar prioridade à aprovação de medidas para salvar vidas e empresas e garantir renda para a população com o objetivo de evitar uma tragédia ainda maior que poderia ser causada pelo avanço e aprofundamento dessa crise.
Para Marcos Lisboa, por exemplo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro mandato do governo Lula, ardoroso defensor da redução do tamanho do setor público na economia, o cenário da crise é semelhante ao de uma guerra e, nessa situação, não há como pensar em economizar para vencê-la, cabendo ao governo adotar medidas não somente para salvar empresas, mas também para ajudar pessoas desassistidas e trabalhadores que perderam e que ainda perderão o emprego e a renda enquanto durar a pandemia, retomando-se o compromisso com o ajuste fiscal e as reformas depois de seu final.
É o mesmo argumento defendido pelo ex-ministro da Fazenda no governo Sarney, Maílson da Nóbrega, que engrossou a fila dos críticos ao Estado depois de aposentar-se no setor público e tornar-se consultor do mercado, ao destacar o fato de o presidente dar a impressão de que prefere contar os mortos do que os desempregados, e manifestar-se a favor do aumento dos gastos governamentais, com o objetivo, em primeiro lugar, de salvar vidas; em segundo de pôr o dinheiro nas mãos das pessoas e de quem dele precisa; e, em terceiro, de salvar empresas.
Mesmo Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central, um dos mais fervorosos inimigo do Estado e defensor do rígido controle das contas públicas, concordou, em várias entrevistas concedidas à imprensa ser necessário esquecer, neste momento, a questão fiscal, e que, por se tratar de uma verdadeira guerra, não se deve preocupar com os seus custos agora, e que o importante é “garantir que as pessoas continuem a receber renda e que as empresas tenham acesso a crédito para aguentar 3, 4, 5, 6 meses de um período muito difícil”.
O economista Raul Veloso, especialista e guardião de uma administração saudável das contas públicas, descartou qualquer possibilidade de reação do setor privado para superar a crise, numa negação do que dizem os manuais ortodoxos de economia, e restringiu ao governo a capacidade de criar as condições para isso, por este contar com uma “fonte ilimitada de financiamento, que é a emissão de moeda”, considerando que não haveria aumento de inflação pelo fato da demanda agregada se encontrar desfalecida, tal como defende a Moderna Teoria da Moeda. Para ele, é irrelevante o tamanho do buraco fiscal que será criado com a intervenção do governo, “seja de R$ 150 ou de R$ 300 bilhões”, considerando que o governo deve ter como foco “a expansão da capacidade de gastar, de fazer o dinheiro chegar no bolso de quem precisa” para evitar a depressão que está a caminho. O que e como se vai fazer depois para rearranjar e ajustar as contas públicas é algo para ser discutido oportunamente.
Presidente do Banco Central no governo Lula (2003-2010) e ministro da Fazenda no governo Temer (2016-2018), Henrique Meirelles, representante do capital financeiro, em entrevista à BBC News Brasil, publicada no dia 08 de abril, foi categórico ao afirmar que “é hora do governo aumentar fortemente os seus gastos para conter o impacto do coronavírus sobre a saúde e a economia, inclusive com a impressão de dinheiro, emissão de base monetária, e com a captação de recursos por meio da emissão da dívida.
Para ele, projetando que a economia pode levar um tombo de 5% ou mais em 2020, a prioridade deve ser a de evitar a depressão, a destruição dos parques industriais, do parque produtivo, porque, se isso acontecer na dimensão que está se desenhando, nada mais restará após a crise: nem atividade econômica, nem emprego, nem arrecadação, tornando mais difícil a reconstrução. Por isso, mesmo que lançando mão da emissão de títulos da dívida e essa saltar para 90% do PIB, esse seria o menor dos males, considerando que o colapso econômico teria um custo maior, com a dívida aumentando ainda mais como proporção do PIB, dado o brutal encolhimento deste.
Como se tratam de despesas extraordinárias, emergenciais, para os problemas causados pela crise do vírus, e que desaparecerão tão logo a mesma seja vencida, não sendo, portanto, de caráter permanente, essa posição, segundo argumenta, é perfeitamente defensável, tendo-se clareza de que, ao término deste processo, deve-se retomar a política de austeridade e buscar alternativas para cobrir o desequilíbrio fiscal gerado com essas intervenções.
Além da expansão da dívida pública para o financiamento desses gastos extraordinários, o governo pode lançar mão, como coloca, da emissão de moeda, sem estar aumentando o endividamento, a não ser contábil e, também importante, sem provocar inflação, como acreditam os economistas filiados à corrente ortodoxa, dada a situação de forte retração da atividade econômica. Nas suas palavras: “o Banco Central tem grande espaço para expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recuperar a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”. Inacreditável. Até parece um leitor de Keynes, ao qual sempre se recorre nessa situação, ou um adepto da Moderna Teoria da Moeda.
Não existe discordância entre estes economistas sobre o fato de que tanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, como o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, demoraram demais para reagir à crise, porque apegados à crença de que as reformas estruturais, juntamente com as medidas de liberalização da economia, seriam capazes, uma vez aprovadas, de dar conta dos estragos provocados pelo coronavírus, o que explica, em parte, a timidez das medidas incialmente adotadas e até mesmo a relutância ou as dificuldades por eles colocadas para a liberação dos recursos já aprovados pelo Congresso Nacional.
Seu agravamento, acompanhado das exigências do isolamento social e da suspensão de várias atividades econômicas no país para conter a disseminação do vírus, colocou a necessidade de maior urgência na adoção de medidas para aumentar os recursos para a saúde, para proteger os desempregados, os trabalhadores informais e a população vulnerável e para salvar, principalmente as empresas com ela mais afetadas. A economista Mônica Bolle, do Petterson Institute, chegou a propor o benefício de R$ 500,00 mensais por um ano para as 36 milhões de pessoas inscritas no Cadastro Único do Governo Federal e o repasse de R$ 50 bilhões para o SUS. Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso, a criação de um programa de renda mínima para 100 milhões de pessoas, ao custo de R$ 300 bilhões, ou de 4% do PIB. Na mesma linha, seguiu o economista Paulo Lemes, da Universidade de Miami, considerando insuficiente o pacote do governo e sugerindo dobrá-lo ou até triplicá-lo, deixando de lado a preocupação com o teto dos gastos, para jogar dinheiro na economia, salvar empresas, grandes e pequenas, e garantir renda e emprego para a população, visando fortalecer o consumo.
Quem não deve andar nada feliz com as propostas de seus próprios pares e com essa “orgia orçamentária” causada pela crise, muito certamente é a equipe econômica, comandada por Paulo Guedes, que, “guiada pela elegante ideologia do Estado mínimo”, viu, por uma “trapaça do destino”, como bem observa Roberto Pompeu de Toledo, na revista Veja, de 15 de abril”, a crise cair em seu colo. Para essa equipe, por estar sendo, a contragosto, obrigada a abrir os cofres do Estado para enfrentar a pandemia e ver murchar os insanos esforços que vinha realizando para o seu cobiçado ajuste fiscal. Para o Brasil, pelas resistências encontradas para contar com mais recursos tanto para salvar vidas como a própria atividade econômica.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018).
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