Fabrício Augusto de Oliveira•
Com a hipótese de que a situação da crise provocada pelo coronavírus, o Sars-Cov-2, comece a se desfazer, instituições internacionais apostam que o mundo voltará a bombar na economia em 2021, deixando para trás a brutal recessão de 2020, tratando-a apenas como um ponto fora da curva de uma trajetória de crescimento que, no entanto, já se mostrava em desaceleração por problemas endógenos do próprio sistema.
O FMI, por exemplo, projeta um crescimento para a economia mundial de 5,8%, uma taxa espetacular para qualquer período da história do sistema. Em se tratando dos blocos econômicos, prevê uma expansão de 4,5% para as economias avançadas, 4,8% para a União Europeia, 4,7% para a Zona do Euro e 6,6¨% para as economias emergentes.
Ao nível dos países, projeta que a economia dos Estados Unidos pode crescer 4,7%, enquanto na Zona do Euro, a França emplacará uma expansão de 4,5%, a Itália de 4,8%, a Espanha de 4,3% e a Alemanha de 5,1%. O Reino Unido, agora fora da União Europeia, não ficará fora dessa festa, crescendo 4%.
Entre as economias emergentes, praticamente se reeditaria o desempenho da última década do século XX e da primeira do XXI, com a China voltando a crescer 9,2% e a Índia 7,4% e, na América Latina, até mesmo o Brasil aparece nessas projeções, com uma taxa de 2,9%, algo que não acontece desde o início da década, mesmo sem o fenômeno do coronavírus.
Mais otimista, ainda, a Comissão Europeia prevê uma expansão da Zona do Euro de 6,3% em 2021 e crescimento espetacular de 6,5% do PIB da Itália, 7,4% para a França, 7% para a Espanha e 5,9% para a Alemanha, sob a hipótese de que o confinamento seja gradualmente flexibilizado a partir de maio e que não ocorra uma segunda onda do vírus.
Ou seja, de acordo tanto com o FMI como com a Comissão Europeia, para ficar com apenas essas instituições, o mundo sairá da Grande Recessão de 2020 para o paraíso do crescimento e da normalidade econômica já no próximo ano e, pelo menos do ponto de vista da economia, como se a crise provocada pelo coronavírus fosse apenas um contratempo que, uma vez superado, permitirá ao sistema retornar à condição de normalidade, recuperando, muito rapidamente, as perdas com ele provocadas.
Não é preciso dizer que essas instituições e os economistas responsáveis por essas projeções não parecem ter entendido a natureza dessa crise e nem levado em conta os estragos que com ela foram provocados sobre os motores do crescimento. E nem de ser irreal a hipótese com que trabalham de que estes motores serão automaticamente religados à medida que o inimigo – o coronavírus - for sendo derrotado, como se fosse um intruso na festa do crescimento, o qual, uma vez expulso, propiciará a volta da normalidade, sendo sua presença logo esquecida. Não é bem assim.
A verdade é que a passagem, mesmo que rápida dessa pandemia, como esperam e supõem essas instituições com essas projeções, desarticulou não somente os sistemas de produção, assim como introjetou visões diferentes sobre o funcionamento do sistema e também sobre a forma de organização social que, muito provavelmente irão influenciar o modo de vida e a sua dinâmica e, até mesmo, não se pode descartar, a forma como a própria teoria econômica terá de lidar com este fenômeno.
O fato é que a crise do coronavírus, tal como um tornado, passou varrendo empresas, particularmente as de pequeno e médio portes, as principais responsáveis pelo emprego no mundo, e também, apesar de maiores, as que dependem principalmente da circulação de pessoas, como as aéreas, de transportes e de turismo, entre outras, além de colocar de joelhos todos os setores produtivos, com queda considerável de suas vendas, faturamento e lucros, perdas que não se recuperam rapidamente. Ou seja, muito capital deve ter sido queimado nessa crise, danificando seriamente um dos motores mais importantes do crescimento, diante da escassez de capital, da elevada capacidade ociosa e de uma demanda deprimida.
Mas não foi só. Do lado do trabalho, vários milhões de empregos foram perdidos pelo mundo e o nível de renda da população desabou, mesmo com muitos governos compensando, parcialmente essas perdas e aumentando as transferências de renda para as populações mais vulneráveis, enfraquecendo ainda mais o poder de compra das famílias, que já vinha numa trajetória declinante devido ao aumento da crescente desigualdade social. Sabe-se pela experiência histórica que empregos não são criados na mesma velocidade com que são destruídos e que a reestruturação do mercado de trabalho e seu fortalecimento costumam levar tempo, velocidade que depende do retorno da confiança dos agentes econômicos no futuro dos negócios, o que parece improvável diante de uma demanda agregada desfalecida.
Mesmo o comércio internacional de produtos praticamente estancou com queda prevista que pode chegar a mais de 30%, com redução significativa dos preços dos bens comercializados, notadamente das commodities, e prejuízos elevados para os produtores. Sua reativação e o retorno a uma situação pré-crise do coronavírus exigirá uma normalização da vida econômica que já não era das melhores antes de seu surgimento, considerando que o mundo se encontrava numa trajetória declinante provocada por vários problemas, como a guerra comercial China-Estados Unidos, a piora no desempenho econômico destes dois países e também da Zona do Euro, o brexit britânico e a fraqueza da demanda com o aumento da desigualdade.
Não há nada, assim, do lado da demanda que justifique o otimismo dessas previsões, ainda mais se considerando que os Estados, de uma maneira geral, devem fechar seus orçamentos no final da crise, com elevados níveis de déficits primário e nominal e também com uma dívida descomunal decorrentes do esforço realizado para salvar vidas e o próprio sistema econômico do colapso. As próprias previsões do FMI indicam que, especialmente nas economias desenvolvidas, o endividamento deverá atingir, como proporção do PIB, 120% e, em economias emergentes, como o Brasil, por exemplo, 100%, um nível inadmissível para o pensamento econômico dominante, o que exigirá ajustes fiscais draconianos para afastar os riscos de instabilidade da economia como defende essa escola de pensamento.
Ora, a menos que essa projeções estejam apoiadas na hipótese de que não se amarrará o Estado, de acordo com as propostas que têm sido ventiladas de reverter seus desequilíbrios e endividamento no período pós-epidemia, o que poderá agravar ainda a situação do crescimento, e de que se vai continuar mantendo a licença a ele concedida de continuar gastando para reerguer a economia, mesmo que aumentando seus níveis de endividamento, o que representaria uma mudança radical na forma de encarar sua atuação pela ortodoxia, não há por que acreditar nas projeções realizadas por essas instituições para 2021.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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