Por Ester Abreu Vieira de Oliveira*
A falta de entretenimento social, a constante e obrigatória permanência em casa, a solidão, a reviravolta na vida cotidiana provocada pelo mundialmente conhecido, o minúsculo coronavirus, que provoca a pandemia covid-19, é o tema que domina as falas atualmente. Para fugir do assunto entristecedor do momento, pode-se recorrer à memória de acontecimentos venturosos, pois o pão e o circo alimentaram e alimentam o público. Distribuí-los é atitude política ancestral, ricamente comprovada na História Romana, e no tempo que vivemos agora, com um cenário político-social desanimador, sinto que uma viagem pela minha meninice pode trazer algum alento para corações e mentes.
Retorno à década de quarenta, na minha infância, em Muqui. A movimentação geral da cidade ocorria em junho, durante os preparativos para o dia 24, festividade do padroeiro da cidade o São João Batista. As costureiras e as lojas se movimentavam. Indumentárias novas para toda a família. A alternativa chic para o baile de gala, para uns mais sofisticados, e para o popular, para os demais. A melhor culinária para os hóspedes, amigos e familiares que vinham à cidade. E, no dia da festa, a alegria jorrava: procissão, coloridas barraquinhas, músicas nos alto-falantes, leilões de minudências (frango assado, bolos, xícaras, sabonetes, entre outras coisas) que com alegria depois de um dou uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, o sorriso espalhava num rosto infantil ou não. Mas havia também o famoso leilão de gado para uma minoria de freqüentadores. Mas bem noitinha, e já dominando o frio, além dos bailes, havia a queima dos fogos feitos pelos Pavani. Eles brilhavam e explodiam os foguetes na noite colorindo o céu, o último que ficava central, bem perto, da igreja, aparecia o quadro de São João Batista, quando o fogo extinguia. Nessa hora criança vai para casa e moços e moças para o baile.
Porém, fora dessa festividade da metade do ano, o que fazia afluir gente à cidade, e ter outro aglomerado social eram os parques. Eles proporcionavam a oportunidade de sair à noite. Com eles se espalhava a alegria, a música, as maçãs do amor, os jogos diversos, e com a roda gigante e a rumba, provocavam também o medo e a satisfação de um movimento circular uma pela rotação para cima e a outra pela circular.
Outros itinerantes visitantes, os ciganos, proporcionavam à cidade um movimento social mais tranquilo. Despertavam curiosidade e uma espécie de medo. Possuíam caminhões e animais e em suas barracas havia muitas cores nas vestimentas das mulheres. Estimulavam a curiosidade dos moradores locais com seu modo de vida: a maneira de cozinhar galinha e cereais e verduras tudo em uma só panela, a fala entre eles que não se faziam entender e a insistência para la buena dicha. O estranho que representavam aguçava as mentes férteis e se espalhava o temor de que poderiam roubar as crianças.
Mas das novidades que vinham de fora era o circo um grande atrativo exótico por excelência. Despertavam nas crianças e adultos a curiosidade e sorrisos. Antes do dia da estreia havia uma passeata pela cidade de artistas e animais. Os meninos gritavam acompanhando-a: “Hoje tem marmelada – Tem sim senhor. Hoje tem goiabada – Tem sim senhor. E o palhaço o que é? É ladrão de mulher”. O medo dos leões e a curiosidade pelo grande paquiderme de longa tromba que, algumas vezes ao passar diante de uma venda, que nessa época deixavam-se sacos de cereais semiabertos na porta, descia a tromba e sugava tudo o que havia. Uma vez, aconteceu quando vínhamos do colégio, o animal colocou a tromba num vasilhame e num jato de água nos molhou.
Ver o desfile era emocionante, mas o melhor era quando nosso pai nos levava à uma seção circense. Era muita alegria. Sentavamos em tábuas encasteladas em círculo e de lá vibrava nosso coração com homens perigosamente dentro de uma jaula com o leão, macacos andando de velocípedes, homens em uma motocicleta em um globo de ferro, homens e mulheres voando nos trapézios, e cachorrinhos quase bailando e saltando dentro de círculos de madeira. Os mágicos traziam surpresas de nossa cegueira de ver e não compreender o encanto visual de cortar ao meio uma mulher que depois saia pulando, ou de retirar de uma vara muitos lenços coloridos ou de fazer sair do chapéu pombos branquinhos. Palhaços com piruetas e jogos pitorescos, que nos faziam rir. Homem forte que levantava peso e quebrava vidros com os dentes. E quase sempre por último aparecia o desfile dos elefantes andando obedientes, comandados por homens de roupas coloridas. Como gran finale um dos enormes animais se equilibrava com as quatro patas sobre um tamborete e com uma gaita presa na tromba tocava o hino nacional. Além de todas essas atrações, espetáculo à parte, e para os adultos, eram as peças de teatro, que envolviam infalivelmente ações muito trágicas de amores estraçalhados.
Assim, buscar na memória situações de encontros alegres alimentam o espírito e trazem alguma esperança de que a nossa liberdade em todos os sentidos será recuperada.
*Profa. Emérita da Ufes,
Presidente da AEL, Vice-Presidente da AFESL