Por Fabrício Augusto de Oliveira*
Bolsonaro, amante de regimes militares, e os generais que o assessoram, por vocação autoritária ou por gosto pelo poder, têm crescentemente desafiado as instituições democráticas e, às vezes velada ou explicitamente, ameaçado o país com a tomada do poder pelo Executivo, colocando as Forças Armadas numa saia-justa por passarem a impressão, para a população, que falam em seu nome. Um engano, conforme manifestação de generais da ativa que têm repudiado tais iniciativas e demonstrado desconforto com as posições de seus pares.
O que une esses generais-assessores na defesa intransigente do presidente, sem enxergar em suas ações antidemocráticas qualquer descumprimento da ordem constitucional, é a leitura distorcida e tendenciosa de que seus poderes são ilimitados e de que as Forças Armadas existem para defender as ameaças ao poder do Executivo, atuando, portanto, como Poder Moderador, como se o país ainda estivesse sendo regido pela Constituição de 1824 do período imperial.
Nessa visão, que nada tem a ver com a Constituição democrática de 1988, o presidente pode tudo, sendo que os demais poderes, o Legislativo e o Judiciário, são apenas forças auxiliares, que têm de se submeter aos seus caprichos e às suas ordens, e que as Forças Armadas por estarem, de acordo com o art. 142 da CF 88, sob a autoridade suprema da Presidência da República, podem por ele ser convocadas para restabelecer a lei e a ordem, intrometendo-se e silenciando os demais poderes caso necessário.
Ora, essa é uma interpretação complemente equivocada sobre a independência dos poderes numa democracia, como se estes fossem absolutos e conferissem ao Poder Executivo passe livre para fazer o que bem entende, como tem ocorrido no governo Bolsonaro, desrespeitando seguidamente os preceitos constitucionais, e fosse vedado aos demais poderes barrar seus atos, sob pena de sofrerem intervenção pelas Forças Armadas. Neste caso, não seria a Suprema Corte a guardiã da Constituição, papel que lhe é conferido pela mesma, mas as Forças Armadas que, sob o comando do Executivo, atuariam como Poder Moderador, garantindo seu direito de governar, mesmo passando por cima da carta constitucional, o que nada tem a ver com um regime verdadeiramente democrático.
Por mais enviesada que seja essa leitura do art. 142, ela fornece às Forças Armadas um papel maior no concerto dos poderes que efetivamente dispõem e vem sendo defendida pelos generais-assessores do governo para ignorar os vários crimes por ele cometidos e para ameaçar os demais poderes, notadamente o Supremo Tribunal, por limitar e barrar suas ações nessa direção. Na verdade, este tem sido o pretexto para seus representantes, afastados do poder desde o fim da ditadura de 1964/1985, agora entrincheirados no governo militar do presidente Bolsonaro, retomarem as rédeas de controle do país e voltarem a dar as cartas sobre o seu futuro, restaurando sua hegemonia, nem que seja por meio de um novo golpe com veladas e insistentes ameaças à sua possibilidade feitas pelos mesmos.
A insistência de Bolsonaro e de seus assessores-generais com esse papel das Forças Armadas levou o ministro e vice-presidente do STF, Luiz Fux, a conceder uma liminar para disciplinar as regras de sua atuação, pedida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), no dia 12 de junho. Em sua decisão, Fux afirmou que “o poder da chefia das Forças Armadas é limitado” e que não existe margem para interpretações que permitam sua utilização para “indevidas intromissões no funcionamento de outros poderes”. E ainda que “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem não acomodam o exercício de poder moderador entre os poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário”, destacando o fato de que, apesar da “prerrogativa do presidente autorizar o emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou a pedido do Supremo ou do Congresso Nacional, a mesma não pode ser exercida contra os próprios poderes em si”. Proteger os poderes constitucionais e atuar na defesa da lei e da ordem, o papel das Forças Armadas, não significa que a elas cabe o papel de intérprete da Constituição, campo exclusivo de atuação do STF.
O recado claro do ministro não parece, contudo, ter encontrado acolhida nem na presidência da República, nem no ministério da Defesa. Em nota, no mesmo dia 12 de junho, assinada por Jair Bolsonaro, pelo seu vice, Hamilton Mourão, e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, um general da ativa, reafirma-se que as Forças Armadas “não cumprem ordens absurdas, como, por exemplo, a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”. Ou seja, em alguma medida procurando, com essa nota, blindar o Executivo de qualquer tentativa do Congresso ou do STF de apear o presidente e o seu vice de seus cargos por julgamentos políticos, mesmo que embasados nas letras da Constituição.
A não ser o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, que tem dado acenos favoráveis para Bolsonaro e sua ala militar, sobrevoando de helicóptero com ele em manifestações antidemocráticas e assinado a nota em que reforça a visão equivocada do papel das Forças Armadas de intérprete da Constituição, não se observa indícios de que seus comandantes efetivos da ativa, seja do exército, da marinha ou da aeronáutica, estejam dispostos a embarcar na aventura de um golpe militar. Tirando esse caso mais raro do ministro da Defesa, nenhum endossou até hoje essa leitura torta do art. 142, o que deve ser o motivo de Bolsonaro continuar contido em sua proposta de ruptura institucional apenas continuando a testar os limites de sua atuação, enquanto não tiver a certeza de apoio necessário para seu desatino ou enquanto não for contido pelas instituições democráticas.
Mesmo que Bolsonaro, que no exército sempre foi considerado um mau soldado e nunca negou sua predileção por regimes autoritários, tenha militarizado seu governo e conseguido envolver os generais da reserva em seus planos, que pressupõem a instauração do caos, e os dois generais da ativa, Ramos e Azevedo, cuja atuação é vista com grande desconforto pelas Forças Armadas por passarem a impressão, para a população, de estarem falando em seu nome, parecem remotas as chances de contar com seu apoio para este objetivo. Se a insensatez extremada de sua equipe militar para instaurar o caos e estimular essa ruptura se encontra em curso, o outro lado, o das Forças Armadas ativas parece continuar firme em sua verdadeira missão de proteger a democracia e garantir a ordem constitucional, sem leituras equivocadas do art. 142 da Constituição. Ainda bem, para desespero de Bolsonaro e de seus companheiros de aventura.
Apoio mais efetivo a um autogolpe continua restrito aos apoiadores fanáticos e antidemocráticos do presidente Bolsonaro, da sua trupe militar, embora essa proposta venha sendo categoricamente negada por seus membros, dos noventa coronéis da reserva do exército que assinaram um manifesto criticando o STF, ao qual se soma, agora, um outro contra o ministro do Supremo, Celso de Mello, elaborado por oficiais também da reserva da aeronáutica, com o apoio de outros 16 da marinha e 10 do exército e a assinatura de 30 civis saudosos do regime militar. Principalmente por estes militares serem, em sua quase totalidade, da reserva, são pequenos os riscos de que este apoio possa coroar os sonhos de Bolsonaro, mas as instituições não podem tardar a agir para impedir que a irracionalidade destes grupos crie o caos para jogar novamente o Brasil no mundo das trevas.
* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
Nota: reprodução da Internet, “Poder Moderador”; aula de História sobre uma característica da Constituição de 1824.
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