Por Erlon José Paschoal *
Nestes tempos de isolamento há livros que sutilmente nos convidam à leitura. O romance de Gabriel Garcia Marques – “Cem Anos de Solidão” – lançado em 1967, é um deles. Ele se tornou um dos livros mais lidos em língua espanhola depois de “Dom Quixote” de Cervantes, atestando assim a sua receptividade e o seu poder de encantamento.
O autor conta a história da família Buendía, uma estirpe de seres solitários que fundaram e habitaram a cidade de Macondo, um lugar imaginário que acabou se tornando uma metáfora, um microcosmo da América Latina de colonização espanhola, com suas crenças, suas contradições, suas lutas, seus desvarios, suas crises intermináveis, suas guerras, seu militarismo, seus assassinatos cruéis e seu cotidiano repleto de situações absurdas, percebidas e entendidas como normais.
Neste sentido, um aspecto interessante da obra é o estilo criado pelo narrador de tornar os fatos inverossímeis, irreais e mágicos, como algo aceito com total naturalidade pelos personagens e pelos leitores. Os críticos denominaram este estilo de realismo mágico ou realismo fantástico.
O romance tem múltiplos temas que se entrelaçam e se mesclam, e vão formando a narrativa e a psique dos personagens. Além da solidão, é claro, a obra abarca o ciclo interminável do tempo, a memória, o esquecimento, as repetições, o despotismo e a exploração desmedida e cruel comandada pelos invasores espanhóis e, mais adiante, pelos norte-americanos.
Ler “Cem Anos de Solidão” é, sem dúvida, uma experiência única que impressiona pela combinação, às vezes harmoniosa entre real e irreal, às vezes chocante, e pela sensação curiosa de que tudo isso faz parte de nossa História e também faz parte de nós.
A história das várias gerações da família Buendía se passa em um tempo mítico. Cem é um número completo que representa uma grande pluralidade e fecha um ciclo, embora a narrativa transcorra por um período bem mais longo. Logo no início, o autor anuncia que nas primeiras lembranças do Coronel Aurelino Buendía, quando seu pai o levou para conhecer o gelo, o mundo era tão recente que muitas coisas ainda careciam de nome, como nos tempos em que Deus ainda não havia pronunciado o Verbo.
Relevante também é que a cidade de Macondo construída à beira “de um rio de águas diáfanas”, não é apenas um palco de acontecimentos, mas ela própria um personagem. Sua relação com o mundo exterior se dá, sobretudo, através da vinda periódica dos ciganos conduzidos por Melquíades, que sempre traziam as maravilhas da vida moderna: a dentadura, o imã, a luneta, o gelo e a magia capaz de alterar a realidade, fosse transformando a matéria através da alquimia, fosse tornando alguém invisível.
Para ela, para Macondo, vêm estrangeiros diversos – turcos, italianos, espanhóis, judeus, belgas –, mas principalmente norte-americanos ávidos para se apropriarem de uma de suas grandes riquezas: a banana. Instalam ali uma grande empresa de plantação e exportação de bananas, se impondo através da exploração cruel e desmedida de seus habitantes e da natureza. Mesmo invadida pelos exploradores e assolada pelas pestes – como a peste da insônia, por exemplo – pelo dilúvio, pela seca, pelas guerras, pelos saques e pela mortandade dos pássaros, Macondo se mantém viva, como se fosse uma metáfora da vitória da vida sobre a morte, nesta síntese da América espanhola.
E depois de inúmeras peripécias, de acontecimentos insólitos, violentos, mágicos, surpreendentes e estranhamente cotidianos, chega ao fim a saga da família Buendía composta por pessoas solitárias e tristes. Toda esta história secular que mistura realidade e ficção estava devidamente registrada nos pergaminhos do cigano Melquíades, que desde o princípio sabia de tudo, como um mago, um adivinho, um alquimista.
A moradia e o último representante dos Buendía, ainda um bebê recém-nascido, foram devorados pelas formigas ruivas, pelas traças e pelas ervas daninhas. Contraditoriamente, este bebê, o último descendente, foi o único gerado com amor, com paixão e muita voracidade sexual.
Todos caíram no esquecimento e ninguém mais se lembrava daquela família. A História oficial se incumbiu de remanejar os fatos, de modo que, o que supostamente havia ocorrido – como, por exemplo, a greve, a sublevação dos trabalhadores da companhia bananeira norte-americana e o decorrente assassinato de 3000 pessoas – não passasse de invencionices e boatos. E os advogados, os “ilusionistas do Direito”, deram o acabamento final da versão cínica e hipócrita dos fatos.
São os mundos construídos através da literatura – para um dos personagens “o melhor brinquedo para se zombar das pessoas” –, que vão trilhando o seu caminho nesta veia sempre aberta da América Latina.
Aquela casa situada em Macondo, agora povoada pelos mortos e devorada pela natureza, é levada pelo vento: aquela cidade dos “espelhos ou das miragens” é enfim tragada pelas intempéries. O romance começa com o Coronel Aureliano Buendía diante do pelotão de fuzilamento e termina com a força da natureza que a tudo transforma. O que faz lembrar um verso de Bertolt Brecht: “Destas cidades restará somente o vento que as atravessa”.
“Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Marques é, sem dúvida, uma obra-prima da literatura mundial que merece ser lida e relida sempre.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.