Daniel P. Sampaio [2]
A financeirização pode ser entendida, sem grandes precisões conceituais, como o aumento dos ativos financeiros nos portifólios dos atores econômicos, sejam eles as famílias, as empresas e os governos. Trata-se de uma mudança sistêmica na dinâmica econômica que teve sua gestação durante as décadas de 1960, com os eurodólares, e na década de 1970, com os petrodólares a partir da sobre-acumulação de dólares que buscavam valorização no sistema financeiro internacional.
Após a crise do padrão ouro-dólar de Bretton Woods [3], a financeirização encontrou seu protagonismo como padrão de acumulação de capital em escala global, sobretudo após o choque de juros da economia norte-americana em 1979, que trouxe consigo a retomada da hegemonia norte-americana e a diplomacia do dólar forte. Encerra-se, assim, com padrão monetário internacional a utilização das taxas fixas de câmbio, e, além disso, observa-se o surgimento do mercado de derivativos de moedas.
A vulnerabilidade externa, por sua vez, pode ser entendida, também sem grandes precisões conceituais, como a probabilidade de determinada economia nacional em responder às pressões externas. Historicamente, o financiamento externo no Brasil sempre foi um dos grandes desafios para a condução do processo de desenvolvimento, considerando que é um país subdesenvolvido e de moeda não conversível.
Em pontuais momentos da história econômica brasileira a questão do financiamento externo se agravou a tal ponto que o país teve de recorrer à moratória, sendo a última delas em 1987. Desde a década de 1980, em alguns casos, teve de recorrer às agências oficiais de financiamento, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). A crise da dívida mais grave foi na década de 1980, quando se esgotou os fluxos de capitais voluntários que financiavam o balanço de pagamentos.
Considerando o contexto externo de elevada liquidez internacional, o Brasil buscou o endividamento externo para financiar a continuidade do processo de industrialização de importações principalmente durante a década de 1970, sobretudo durante os períodos do “Milagre Econômico” e do II Plano Nacional de Desenvolvimento.
O principal instrumento utilizado para a entrada de divisas estrangeiras foi a Lei 4.132/62, que deu ao capital estrangeiro tratamento jurídico idêntico ao capital nacional. Estes recursos foram utilizados para financiar, por exemplo, máquinas e equipamentos, bem como empréstimos para empresas privadas e estatais. Desde a crise da dívida na década de 1980, percebeu-se o esgotamento do modelo de financiamento do processo de industrialização por substituição de importações.
Na década de 1990 foram realizadas reformas econômicas que visavam a redução do papel do Estado na economia, as privatizações, a abertura comercial e financeira sob as recomendações do Consenso de Washington. Conforme largamente já discutido na literatura, a pressão dos credores externos tinha por objetivo garantir o pagamento da dívida por meio de reformas estruturais.
Sob a égide de uma suposta modernização estavam argumentos que defendiam a supremacia dos mercados, a concorrência como processo de mediação social e redução dos graus de liberdade da política econômica, típicos da orientação da ortodoxia econômica. Essas reformas econômicas encontraram apoio e suporte das elites no poder no Brasil, inclusive como mecanismo de garantir a defesa patrimonial, sobretudo a rentabilidade financeira (por meio da abertura financeira e das elevadas taxas de juros).
A opção de ingresso no neoliberalismo tardio promoveu maior instabilidade nos fluxos de capitais e regressão industrial. Ela não representou condições que garantissem a retomada do crescimento econômico, ou, no melhor dos casos, no formato típico do “voo de galinha”.
Além disso, promoveu aumento da concentração bancária e redução do papel do Estado no sistema financeiro, seja por meio da desregulamentação, seja por meio das privatizações, seja por meio da liquidação de bancos públicos (principalmente estaduais). O setor bancário internacional ingressou no país tendo comportamento muito próximo aos dos bancos nacionais, principalmente privados, que, geralmente, possuem comportamento mais curto-prazista, com elevadas taxas de juros e pouco avesso ao risco. O sistema financeiro no Brasil coloca-se, assim, como um entrave ao desenvolvimento econômico.
O contexto internacional mudou na primeira década do século XXI e deu condições ao Brasil, a despeito do modelo precário de inserção externa, obter elevadas reservas internacionais e até mesmo superávits em transações correntes no balanço de pagamentos. É fato que se percebeu mais claramente o processo de reprimarização das exportações, mas os indicadores tradicionais de vulnerabilidade externa, principalmente os de solvência externa, melhoraram substantivamente. Assim, as típicas crises cambiais se colocam num plano cada vez mais distante, chegando-se até mesmo a aventar a redução da vulnerabilidade externa.
As discussões sobre a vulnerabilidade externa na economia brasileira têm apresentado em geral dois caminhos, utilizando-se de dados e indicadores de fluxo e estoque. A primeira visa realizar uma análise dos indicadores econômico-financeiros sobre solvência externa, que permitem visualizar maiores ou menores chances de um país enfrentar crises cambiais. A segunda visa realizar estudos sobre o lado real versus o lado financeiro, onde se apresentam distintos balanços do padrão de inserção externa e de financiamento dos sucessivos déficits em transações correntes.
Contudo, deve-se considerar alguns elementos importantes no que tange às transações internacionais, sejam elas reais ou monetário-financeiras:
i) que as transações internacionais são realizadas em distintas moedas nacionais, e que estas distintas moedas que são ativos financeiros;
ii) que diante do processo de reprimarização grande parte das típicas transações de mercadorias estão influenciadas pelas oscilações de preços nos mercados internacionais de commodities;
iii) que as desejáveis atrações de Investimento Estrangeiro Direto (IED), as consideradas de melhor qualidade, apresentam caráter cada vez mais financeiro, haja vista a interpenetração patrimonial das corporações e as operações de crédito intercompanhias;
iv) que os investimentos em carteira, conforme largamente discutido na literatura, possui comportamento volátil e eminentemente especulativo, constituindo-se como fonte precária de financiamento externo;
v) que grande parte das reservas internacionais estão aplicadas em ativos financeiros nos mercados internacionais, geralmente de baixo risco e com alta liquidez, tais como ouro monetário, depósitos especiais de saque no FMI e títulos da dívida soberana.
Em poucas palavras, toda a estrutura do balanço de pagamentos encontra-se interligada com a lógica dos sistemas financeiros, principalmente no âmbito internacional. Nos parece insuficiente, portanto, considerar tanto as transações reais, por exemplo as exportações, quanto das reservas internacionais apartadas da lógica financeira. O desafio, portanto, a nosso ver, é desenvolver melhor as condições e elementos que permeiem a vulnerabilidade externa no contexto da financeirização e da crise estrutural do capital. Crise internacional que evidencia, novamente, a vulnerabilidade externa da economia brasileira e sua inserção passiva na globalização.
[1] O autor agradece aos comentários de Camilla Nogueira e Rafael Silva isentando-os de eventuais erros e/ou omissões. Uma versão anterior e ampliada deste artigo foi publicada nos Cuadernos de Pensamiento Crítico Latinoamericano nº 77, Ago/2020 – CLACSO. Acesso: https://www.clacso.org.ar/libreria-latinoamericana/libro_por_programa_detalle.php?id_libro=2219&campo=programa&texto=19
[2] Professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. Contato: daniel.sampaio@ufes.br.
[3] Durante parte do padrão ouro-dólar US$ 35,00 davam ao portador a quantidade de 31,1 grama de ouro (onça troy). O fim do padrão-ouro dólar representou uma quebra contratual unilateral dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, pois romperam com o lastro monetário alterando-o pelo dólar-flexível.
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