Por Erlon José Paschoal *
Jorge Luiz Borges, um dos maiores escritores da literatura universal, proferiu em 1979 na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires, uma série de cinco conferências, reunidas e publicadas posteriormente na obra “Borges Oral”. Uma delas traz o título de “O Livro”.
Borges era um amante dos livros, havia sido Diretor da Biblioteca Nacional da Argentina e convivido em meio a livros sempre com um carinho muito especial. Ele, aliás, se autodefinia mais como leitor do que como escritor. Um de seus contos mais conhecidos - “A Biblioteca de Babel” – retrata uma biblioteca composta por um número infinito de livros, todos exemplares únicos, mesmo que a diferença entre alguns fosse uma letra ou até mesmo uma vírgula. Estes livros abrangem todos os temas possíveis, incluindo aqueles que explicam estes temas e os que explicam estas explicações e assim sucessivamente em um labirinto infinito. A biblioteca é descrita como um mundo, ou o universo como se fosse uma biblioteca.
Nesta conferência sobre o livro, Borges afirma no prólogo que ele tratará de um instrumento sem o qual ele não conseguiria imaginar a sua vida, e que não lhe é menos íntimo que suas mãos ou seus olhos. Que o livro enfim é uma extensão da memória e da imaginação. Em sua explanação, Borges menciona que os antigos não professavam um culto aos livros, como posteriormente, e que, ao contrário, os primeiros grandes mestres da humanidade nada escreveram, como por exemplo, Pitágoras, Buda, Sócrates e Jesus.
No Oriente, por sua vez, o livro na Antiguidade era algo sagrado. O Alcorão seria anterior à língua árabe; é um dos atributos de Deus, não uma obra de Deus; é como sua Misericórdia ou sua justiça, e a Bíblia – a Torá – teria sido escrita pelo Espírito Santo. Os primeiros grandes sábios foram mestres orais e a oralidade foi então a base da literatura. Por outro lado, o registro de experiências e sonhos no papel se convertem em algo quase sagrado, um modo de propagar conhecimentos adquiridos de uma geração a outra. Por esta razão, os livros neste sentido, são considerados verdadeiros milagres.
Para Platão, os livros assemelhavam-se a seres vivos, mas que infelizmente não dão qualquer resposta quando lhes perguntamos algo. Então, talvez para corrigir esta mudez dos livros, ele inventa o diálogo platônico. Ao abrirmos um livro participamos de uma conversa, iniciada com o surgimento de nossa espécie, da qual tomamos parte compartilhando emoções e sutilezas da alma humana, registradas ao longo dos tempos. Mais ainda – somos responsáveis pela continuidade destes elos que nos fazem sentir parte da humanidade. Borges considerava uma de suas principais funções como escritor fazer ecoar o que o mestre Homero disse. E cita Emerson: “uma biblioteca é uma espécie de gabinete mágico. Nesse gabinete acham-se encantados os melhores espíritos da humanidade, mas aguardando nossa palavra para saírem de sua mudez. Temos de abrir o livro, para, então, eles despertarem. Assim podemos contar com a companhia dos melhores homens produzidos pela humanidade.”
Como um profundo amante dos livros, Borges aconselhava seus alunos a lerem as obras diretamente, antes das críticas. Talvez assim compreendessem pouca coisa, mas sentiriam um prazer especial em ouvir a voz do autor. E que, além disso, deveriam ler somente o que lhes agradasse, pois para ele a leitura atenta e concentrada era uma das formas de felicidade: “O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim ele conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objeto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”.
Ao final, Borges enfatiza seu amor e seu respeito pelos livros e pela literatura, e destaca que eles não vão desaparecer – como muitos dizem –, e que seria muito importante manter o culto aos livros: “Ao lermos um livro antigo, é como se o estivéssemos lendo ao longo de todo o tempo que transcorreu até nós, desde o dia em que foi escrito.” Não é superstição, ele reafirma, é desejo de encontrar felicidade, sabedoria e de se aprimorar como ser humano.
Ler e reler Borges é, sem dúvida, um dos grandes prazeres daqueles que cultivam as palavras, os livros e a literatura.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.