Erlon José Paschoal *
Uma atividade sempre prazerosa e estimulante é ler uma obra de Reinaldo Santos Neves. Há muitas e diversas – romances, contos, poesia – como “Kitty aos 22”, “A Longa História”, “Folha de Hera”, “Muito Soneto por Nada” e “A Ceia Dominicana”. Outra dentre elas, é o livro de contos lançado pela Editora Cousa em parceria com o Instituto Phoenix Cultura “Heródoto, IV,196”, nome do conto - o último do livro - utilizado como título e que tem como personagens nada mais, nada menos, que Sherlock Holmes e seu assistente Watson.
Heródoto, como consta nos livros, foi denominado “O Pai da História”, pois dizem que foi o primeiro homem, em 450 a.C., a desenvolver um estudo ordenado e objetivo das inter-relações entre os eventos do passado e do presente, criando assim o conceito de “História”, tal como o conhecemos hoje. No referido conto, a obra “Histórias” de Heródoto, contendo nove livros, cada um dedicado a uma das musas, foi a chave para que Holmes desvendasse um crime aparentemente misterioso e insolúvel. No caso, a grande pista, que só poderia ser percebida por uma mente como a de Holmes, foi o parágrafo 196 do livro IV, dedicado a Melpomene.
Na introdução, Reinaldo já anuncia que as narrativas têm a vida literária e seus inúmeros personagens como tema, vividas por literatos, leitores, professores, críticos e também por muitos outros autores reais que compõem o repertório imaginativo do autor. Escritores diversos como Bernard Shaw, R.L. Stevenson, José Saramago, Henry James e sobretudo Jorge Luis Borges povoam e penetram discreta ou explicitamente as tramas muito bem construídas e elaboradas por Reinaldo.
A matéria-prima, o principal insumo e conteúdo de sua escrita é a própria literatura, como em um jogo de espelhos, em que lemos um autor imaginando histórias contadas por outros autores, mas aqui ressignificadas, em um processo de intersecção, de cruzamentos e de entrelaçamentos de textos que, ao final, formam estes laboriosos contos de leitura deliciosa. Todas elas se passam em lugares imaginários com nomes fantasiosos, mas sempre permeadas por elementos de nossa realidade circundante, distanciando assim o leitor de seu cotidiano e lançando-o em um universo lúdico, metafísico e arquitetado por ideias e impressões incomuns. O principal espaço fictício onde se passam as histórias é um país chamado Fímbria, “uma república federativa encravada como uma unha em algum ponto bem meridional de um mapa imaginário da América do Sul.”
Em uma de suas outras inquisições, Jorge Luis Borges afirma que os livros podem ser uma espécie de jogo combinatório, mas que são bem mais que apenas uma estrutura verbal, são sobretudo um diálogo infinito que perpassa os tempos, cuja voz e cujas imagens cambiantes permanecem na memória do leitor.
Os contos de “Heródoto, IV, 196” deixam claro que Reinaldo Santos Neves é um escritor habilidoso com domínio pleno de seu ofício e um exímio contador de histórias repletas de referências literárias universais e perpassadas por uma fina e elegante ironia.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, Escritor e Tradutor de alemão.