Por Ailse T. Cypreste Romanelli *
Dona Verônica era amiga de infância da minha mãe. Morava em Paul, filha de pai catraieiro, ou seja, tinha um bote em que transportava passageiros para Vitória, alternando com as lanchas, porque ponte não havia e ninguém pensava nisso. O bote tinha o sugestivo nome de “Furta-moça” e todos os dias o barqueiro levava a filha e amigas para a escola; minha mãe sempre pechinchando, sugeria ir remando para pagar menos, o que nunca lhe foi permitido. Ambas completaram o curso de magistério na antiga Escola Normal Pedro II, lá pelos anos vinte.
Bem classificada em concurso público, Dona Verônica teve dificuldade para escolher uma escola, era negra. Difícil, também, foi conseguir hospedagem pois, na época, a carreira começava nas unidades da zona rural, nas chamadas escolas unidocentes porque tinham uma só professora e uma única turma reunindo alunos do primeiro ao terceiro ano.
Corria o século vinte mas o dezenove ainda ecoava os preconceitos. A antiga legislação para o ingresso no magistério, apesar de revogada há tempos, permanecia latente no imaginário social: “Nas escolas femininas só seriam aceitas senhoras casadas, que apresentassem certidão de casamento ou atestado de óbito do marido ou cópia da sentença de desquite, para conhecimento das causas da separação”. “Mulheres solteiras só poderiam ser professoras se vivessem com os pais e estes fossem de reconhecida moralidade”. Os salários eram baixos e os femininos eram sempre menores.
Dona Verônica não era bonita; era alta, corpulenta e negra. O que lhe faltava no físico, completava-se com a personalidade marcante. Imaginem a intolerância, as frustrações, os obstáculos que precisou vencer para ser aceita nas comunidades, ser respeitada como profissional, fazer valer sua autoridade de mestra, conquistando seu espaço como pessoa. Entretanto, ela conseguiu se impor, pela competência e pela seriedade com que conduzia seu trabalho, Até hoje seus alunos, os poucos que ainda vivem, se lembram dela com carinho e respeito.
Finalmente localizada em Cachoeiro de Itapemirim, logo estava reunida com minha mãe e outras antigas colegas, no Grupo Escolar Bernardino Monteiro, fazendo piada com os perrengues do início de carreira, quando eram apenas aspirantes ao magistério, mocinhas que ninguém levava a sério.
Minha mãe estreara em Santo Antônio das Garruchas, no sul do Estado, onde o único transporte era o caminhão que levava o leite. Chegou à comunidade em um dia de quermesse e foi agraciada com um urinol e um vidro de óleo de rícino, arrematados no leilão para presentear a professorinha. Indignada, foi até o palanque e para espanto geral, com voz firme, agradeceu o “presente” que gentilmente oferecia ao Sr. Vigário para que dele fizesse bom uso.
Não sei onde Dona Verônica começou, mas outra integrante do grupo, ao ser chamada para escolha da vaga, diante da banca do concurso, deparou-se com uma última escola de nome estranho – Biriricas. Disfarçando o riso os componentes da mesa indagaram se ela preferiria a Biriricas de Cima ou a Biriricas de Baixo. Sem saber se aquilo era a sério ou algum chiste de mau gosto, a mocinha tímida e insegura, ficou atrapalhada, começou a chorar sentindo-se ridicularizada e quase perdeu a classificação.
Hoje a gente ri, do mesmo modo que riam Dona Verônica, minha mãe e suas amigas, agora mais velhas e calejadas. Mas, embora já não doesse mais, percebiam muito bem, subjacente, o desprezo pelo trabalho feminino, quando o diminutivo não tem nada de carinhoso, servindo, apenas para desqualificar a profissional.
Competente e rigorosa, Dona Verônica possuía o dom da comunicação; tinha paciência com a incompreensão dos alunos, procurava explicações simples e claras. Desse modo andou resolvendo muitos casos de alunos chamados difíceis, aqueles transformados em verdadeiros problema da família, porque apesar do esforço, não conseguiam aprender. Sua voz era rouca, áspera e forte. Não admitia conversas durante a aula, e não economizava castigos que, na época, consistiam em copiar a lição vinte vezes, ficar de pé no canto da sala com o rosto virado para a parede ou até a extinta palmatória, que uma escova de roupas substituía. Era temida, pois todos conheciam a lenda de que fizera um certo aluno engolir a borracha. Mesmo assim, e talvez porque fosse assim, virou moda era chique freqüentar a escolinha da Dona Verônica.
Na sala de estar transformada em sala de aula, reuniam-se alunos de séries e níveis diferentes, todos com uma história de fracasso. Alguns não sabiam ler mesmo; outros a família já havia desistido de que o filho aprendesse alguma coisa e outros ainda, vinham se preparar para os exames de admissão ao ginásio. E a quem não podia pagar ela ensinava de graça.
Não fui aluna da Dona Verônica eu ia à casa dela acompanhando uma prima, mas ficava atenta e assim, aprendi muita coisa por tabela, especialmente Matemática cujos horrorosos “carroções” me davam pesadelos. Ela explicava de maneira tão simples que eu entendia tudo o que, até então, não conseguira quando explicado pela minha professora. No fundo de minhas lembranças ainda posso ouvir sua voz rascante a dizer: “primeiro os colchetes e depois os parênteses”...
Na ante sala havia uma enorme estante de livros. Ela percebeu meu interesse pelos livros, perguntou se eu gostava de ler e me emprestou alguns. Começava ali uma convivência que duraria anos. Ela me falava do livro e da estória procurando despertar minha curiosidade, Aprendi, com ela, a escolher autores, a prestar atenção na beleza das narrativas, nas palavras diferentes que não conhecia e a tentar reproduzir algumas daquelas construções nos deveres da escola.
O final do ano chegou mas eu continuei, por muito tempo ainda, a frequentar a biblioteca de Dona Verônica. Li tudo o que pude, desde as histórias de Polyanna, até os históricos de Paulo Setubal, passando por José de Alencar, Rudyard Kipling, as Aventuras de Tarzan, a coleção de M. Delly. Um dia descobri As Maluquices do Imperador e A Marquesa de Santos. Dona Verônica negou, afinal, eu só tinha onze anos; na semana seguinte, essas e outras obras “impróprias para crianças” tinham ido para a prateleira mais alta onde eu não poderia alcançá-las. Daí aos clássicos segui por minha conta.
Um dia Dona Verônica se foi. Mudou-se para o Rio de Janeiro, em busca de um curso superior para a filha. Não tivemos mais notícias. Mas o encantamento já ocorrera. Com sua varinha de condão ela me apresentara ao reino encantado e maravilhoso da literatura.
Pelo que ela foi, para as dezenas, talvez centenas de crianças e jovens que ajudou a caminhar pela espinhosa vereda do conhecimento, ela fez a diferença, superando a rejeição pela sua condição de mulher, trabalhadora e negra, vencendo preconceitos e se impondo como profissional. Na nossa memória, e da maioria de seus ex alunos, uma grande mulher, professora, sim!
Vila Velha, outono, 2019
* Ailse Therezinha Cypreste Romanelli é membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, onde ocupa a cadeira nº 25, cuja patrona é Zilma Coelho Pinto.
Este texto faz parte da Antologia que comemora os 70 anos da Academia.